sexta-feira, 27 de maio de 2022

Soletra-me

 
 
 
Saberás soletrar-me, desprendendo-te 
E deixando-te envolver na poesia. 
Ganha-lhe um qualquer sentido, 
Que te faça sentir, e sente. 
Não te atormentes com o sentido de ontem, 
Ou com o sentido que não fará amanhã; 
Se sou, ou não, o poema; 
Se, afinal, o poema és tu. 
 
Flui. Soletra-me, 
Pelas tormentas que ultrapassam as tormentas; 
Pelas brumas que ocultam as brumas; 
Pela luz que ofusca a luz; 
Pela alegria que ultrapassa a alegria. 
A poesia voa, sem voar, voa; 
Ri, de facto, sem rir de verdade, 
Acreditando que pode ser o que não é; 
Que posso ser eu; 
Só eu, ou, só tu; 
Nós?! 
 
Soletra-me, 
Do desassossego ao silêncio; 
Do oculto ao risível; 
Da impassibilidade ao êxtase; 
Do parco ao excessivo. 
Nas métricas clandestinas, 
Nas entrelinhas de algodão ou de arestas, 
Sente, à-vontade. 
Posso ocultar-me na seiva do ulmeiro, 
Da oliveira, do carvalho, do pinheiro, 
Ou de uma qualquer árvore; 
Ou ficar exposto nas fachadas, no ar, 
Ou impregnado nas retinas. 
Sou, apenas, aéreo, sentimental, sensível, 
Sem a sensibilidade das coisas pequenas 
E das pequenas coisas, 
A envolver e a ser envolto; 
Líquido, 
Para saciar uma certa ideia de sede, 
Lavar uma noção de mágoa, 
Não afogar a vida 
E parecer intransponível. 
Sólido, 
O suficiente para não nos esmagarmos, 
Para não nos sentirmos neblina, 
Para não sermos o tudo ou nada, 
Para parecer uma muralha. 
 
Soletra-me, 
Com a minúcia de quem desvenda, 
Com todos os sentidos, 
O aqui e o ali do que me compõe; 
Com a vontade de uma sede, se a tiveres; 
Nas tuas palavras, 
Em ti. 
 
Soletra-me. 
Estou, propositadamente, lento: 
Sorvo, demoradamente, a vida. 
 
 
 
[miscelânea]
[13 de maio de 2022]
 
 
 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Imediações




Ao alheio redondo empertigamento, de passagem, 
Um verso, como uma provocação gramatical, 
Como uma frase fora do ponto, à margem, 
Que me põe de parte e me leva aos poemas escondidos. 
A soma nem sempre revela um mesmo total 
E hoje, encontrei um novo lugar para ler a vida. 
Estenderam-se as palavras a baralhar os seus sentidos, 
Que são os meus e que podem ascender ao infinito, 
O modo de ver-me no fundo. 
No fundo, eu não estou lá, espalhei-me pelo mundo. 
 
É tão fácil comer a felicidade ou a própria fome 
E saciá-la aparenta ser o que nos consome. 
De que é feita a minha fome, a tua, a nossa? 
 
Seremos escravos numa determinada imaginação, 
Determinados sejamos para o não ser, sendo, 
No golpe preciso do nosso coração. 
Esqueço, simplesmente, a caixa, alheia, de apostas. 
Esqueço a incerteza da divisão, nas minhas costas, 
Como quem sustem a respiração para ver o fundo da água, 
Ou o que há no seu fundo; ou como mergulhar sem mágoa 
Na dor que é ser-se invisível. 
Visível é o verso gramatical e formalmente incorreto, 
Mas, variável e simultaneamente, sensível. 
 
 
 
 [miscelânea]
 [04 de maio de 2022]
 
 
 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Viver por dentro

 
 
 
Há dias que as árvores deixaram de viver para dentro, de boca cerrada. 
Eu julgo ascender onde tudo acaba, ao infinito da invisibilidade, 
E passeia-me o vento, onde outros são passeados pelos cães da claridade. 
Medra a noite, como um sinónimo de fim de tarde bem conservada. 
 
Hoje, vejo, nos teus olhos, o brilho de uma ingénua liberdade 
Que, ouvi dizer, se apaga em casa, no débil equilíbrio do género. 
Na verdade, nem sempre se te vê esse brilho, apenas a ansiedade, 
A diagonal de memórias estremecidas, ou o sorriso de um sonho efémero. 
Estados que melhor espelham os boatos de uma parte da cidade, 
De quem não sei que palavras dirão sobre a minha integridade. 
 
Três meses de primavera não me conseguem percorrer, por certo, 
E mais do que alguns segundos seriam uma extravagante inutilidade. 
Fecho os olhos, para ver melhor, para ver menos e me ter mais perto, 
Enquanto inspiro uma certa paz, que é a minha felicidade. 
 
 
 
[miscelânea] 
[27 de abril de 2022]