segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Notificação recebida

 
 
 
Sou vagamente eu, espelhado nessa fotografia. 
Fotografia simples, onde simplesmente era eu, 
Há uns anos nesta data que não previa. 
  
Simples, é um início de frio de ausência, 
Num rasgo de horizonte incandescente; 
O crepúsculo a revolver-se num galho de luz, 
Misturado com um sorriso indecente; 
Uma cegonha afadigada no arrozal da memória 
Em tons de voo e com a profundidade da glória. 
 
Simples, é o Universo e um universo de palavras árduas; 
A saudade, que também entra aqui, e os seus rostos 
Na minha cara de setembro capital e primário, 
Tão compreensível como os infortúnios e os gostos. 
 
À noite, a escuridão expande-se e a casa encolhe, 
Como peças de um enigma dentro de um espanto, 
À procura de uma ideia, num último sacrifício. 
Simples. Tão simples como seres tu tanto, 
Seres infinitamente e não estares aqui, 
Anos depois, nesta data que não previ. 
 
De há uns anos nesta, ou de qualquer outra, data, 
Em dias que se sucedem naturalmente sem igual, 
Acontece, simplesmente: a noite vem sem regresso 
E cada momento é poderoso e original. 
Irremediavelmente, enquanto encolhe, a casa geme 
E o mundo já não aguenta a dor que tanto teme. 
 
Já não estou ali e o não lamento. 
Despi-me das rimas que me iriam salvar. 
Estou aqui, onde não estarei; 
Onde o mundo aparente pode ser o mundo autêntico 
E a realidade pode ser a sua alternativa. 
Sou precisamente eu, quem já não sou, 
Registado nessa fotografia, onde, 
Alegre, sou um reflexo desse contentamento, 
Sem o hábito de lá voltar. 
 
 
 
 [plano e descoberto] 
 [13 de setembro de 2024] 
 
 
 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Plano e descoberto – Prólogo

  
 
 
Quem és tu, que assim tomas a noite, num sonho só? 
Que sou eu, que nada sei, e assim me abandono ao sonho? 



[plano e descoberto] 
[13 de setembro de 2024] 



quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Silêncio partido

 
 
 
Ser da espera o silêncio contemplativo, 
Um silêncio repleto de burburinhos reluzentes, 
A ver a ideia que nos quer conduzir, 
Mais do que transportar, num motivo. 
 
Creio que me perdi de ouvidos abertos, 
Num pequeno vento de desejo 
Que recolhe os pássaros do meio-dia 
Em lugares vagamente certos. 
 
Sorrio ao dia que se senta ao meu lado. 
Desconheço o barco que em mim navega; 
Quantos nós tem o teu nome; 
Que alegria me demora e mantém acordado. 
 
Cansado de ir, espero, dentro da espera, 
Na berma da hora mais invisível, 
Nas dobras dos raios de luz do sol, 
Nos recantos de uma cor quase inaudível. 
Daqui se avista uma longa plantação de asfalto, 
A loucura frenética de um gato estático à janela. 
Não me recordo da qualquer coisa 
Que procurava no ar ralo no tempo 
Da espera por uma brisa tua. 
Sobre mim, o tempo continua. 
 
 

 [miscelânea] 
 [11 de setembro de 2024

 
 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Conflitos

 


A regra é não questionar os deuses e a sua obra. 
Mas, ainda que com deus, nem tudo é deus, 
Que também eu não sou e de outra forma, 
Não sei que deus por aqui passou, por profissão, 
Que não aparenta ter sido por justiça, ou coerência, 
Que assim ficou o horizonte e o ambiente. 
Não sei como lida com o conflito e a consequência 
Das suas escolhas; ou com a consciência, se é que a tem, 
Ou, estando noutro plano, seu plano não se lhe aplica. 
Nem tudo é deus e não gostando eu de ódios e guerras, 
Não estou com ódio, ou em guerra, com qualquer deus. 
Mas, guerra e ódio, deus? 
Porquê ódio? Porquê guerra? 
 
Deixem-me ser pequeno, ou pequenino. 
Qualquer um pode ser gente pequena, 
Mas sem ódio ou guerra, pequena ou grande, 
Ódio ou guerra que mata e estropia gente, 
Gente grande ou pequena, 
Por qualquer forma de matar ou estropiar. 
Até com palavras! 
 

[miscelânea]
[julho de 2024] 



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Ausência

 
 
 
Esta cidade não é uma oliveira num cabeço, entre casas, 
Seria: Cabeço de Oliveira, não a tivesse o capricho, 
Entre névoas, transformado em Oliveira do Bairro. 
 
Chopin conduz-me, aqui, a um certo abismo de Cértima, 
Um rio plácido, por vezes tingido de barro e arrozais, 
Guardado, também, por cegonhas brancas; 
Onde longe está o mar, que mergulha em mim, areia. 
 
Abraço, também, a ausência, companheira. 
Continuo em luta com imaginários planetas retrógrados  
Que se dispuseram no meu caminho a solo, tão chão, 
Numa visão impercetível aos meus sentidos. 
Bach traz-me, agora e aqui, uma serenidade não vivida. 
E não é tudo, nem tão pouco, nem tanto assim. 
 
Os labirintos são-me outros e sem conjeturas, 
A que nunca foi dado, na desobediência à solidão; 
Outras luzes, outras cores, a mesma carência. 
As palavras dizem de mim as realidades 
De quem as quiser ler, ou com quem. 
Também te perguntas por onde andas? 
Quem és tu, agora, e quem, agora, eu sou? 
  
  
[miscelânea]
[18 de julho de 2024]
 
 
 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Soldado desconhecido

 
 
 
Na rua: 
 
Quase sobe o degrau imaginário, de terça-feira, 
O soldado desconhecido, banhado a bronze, 
De arma em riste. Talvez precise da cadeira. 
A cadeira diz asneiras e não é suficiente, 
Sabe que nunca esteve de pé, 
Por vezes faltou-lhe a fé, 
À cadeira, ao soldado, ao escriva e ao lente. 
 
Ou, num desnível sonhado, ao terceiro dia da semana, 
Que por acaso iniciou num domingo, antes da missa, 
Que não assisto, um vulto coberto a bronze aguarda 
com a arma pronta para algo imaginário e perpétuo. 
Imita um soldado e eu imito um observador curioso. 
Dar-lhe-ia a cadeira profusamente desbocada e escassa, 
Para seu, creio que, merecido descanso. 
 
Entretanto, eu não sei se devo pisar a relva, à terça, 
O soldado não tem mochila e gostaria de dar-lhe uma. 
Não a minha, que não é de bronze e contém o escuro 
Com que procuro a luz, a luz e umas explicações. 
 
 
Em casa: 
 
Os versos duvidam do tapete da entrada 
E a porta aberta permanece muda e fechada. 
Apanhei o silêncio desprevenido, 
Com o gato mais velho ao colo 
E com o gato mais novo aos pés. 
Os sonhos acorrem em gemido, 
Procuram luz na escuridão que descolo. 
Surpreende-se a sala, que apruma os rodapés; 
Os gatos, com a surpresa da sala; 
E o silêncio, que não se cala. 
 
Talvez eu seja um acaso, mas não o caso pessoal. 
Talvez eu tenha um registo inconfundível: 
Um sol poente à procura de ser perfeito e matinal; 
Demasiadas cores no meu caminho possível, 
Onde descobri o que vale, e ao que sabe, a promessa. 
Seria mais fácil se pudéssemos resumir toda esta peça, 
Levá-la ao expoente do seu valor indivisível, 
E isso com o tempo de quem não tem pressa; 
E tudo isto num maravilhoso e simples som audível, 
A dizer “amo-te”, ou “te amo”, de peito iluminado, 
Com os olhos em carícias e de sorriso arrebatado, 
Como uma eterna primeira vez, sempre nova e repetível. 
 
 
 
 [miscelânea] 
 [12 de setembro de 2023] 
 
 
 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Cubo

  
 
 
Há instantes: 
 
O amor adquiriu a transparência oblíqua da manhã. 
Sentir, que a própria vida é e não é. 
É o Vouga que aflui discretamente no tema, 
Assim como de facto desemboca, de pé, 
Mas sorrateiramente, na ria, um lema 
Que disfarça o mar à ré. 
 
O porquê de viver, de fazer versos, da fé, 
Reside na vida do próprio poema, 
Que a própria vida é e não é. 

  
Neste momento: 
 
O poema lê-nos os olhos, leva-nos pela sua mão. 
Os flamingos aparentam ter sido plantados na ria, 
Flamingos que aparentam ter plantado a aparente indiferença. 
Posso, divorciado, amar a divorciada e ser isto alegria, 
Apenas em mim; numa maré, apenas uma crença. 

O amor e a solidão são, em si, muitas noites de insónia; 
Navios de frustração, à entrada da barra, à espera de ponto, 
Num mesmo porto de abrigo, antigo, sem cerimónia. 

O amor, o seu conceito, é tão diverso como o da solidão; 
É tão vago e impreciso como a própria realidade; 
Tão semelhante e perfeito como a miragem ou a confusão; 
Tão urbano, e a jeito, e tão feito de ruralidade. 

  
A instantes: 
 
A metafisica mais lenta do amor: 
Talvez, amanhã. 
 
 
 [miscelânea] 
 [14 de julho de 2023] 
 
 
 

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Etcétera




Eu já encontrei o amor, algumas vezes. 
Por entre esta cortina inequívoca de pó de anos, 
Creio reconhecer, ainda, o som da sua construção; 
O som das suas labaredas altas ao final dos dias,
Dos quais já não existem as brasas, que ainda existem, 
Nem enganos, talvez um pouco mais do que imaginação. 
 
Eu pintei e pinto palavras impossíveis. 
Recordo-me de vidas nossas, com pensamentos meus, 
Cheios de andorinhas, papoilas e gargalhadas vossas/nossas, 
Onde a primavera se esqueceu de espreguiçar cegamente, 
Em pontas de pés de sol nascente e de amor sem fuso. 
Ou acredito que existimos, podemos existir, 
Um pouco mais ou menos assim. 
 
Poderão viver, em alguém que possa querer, 
Os pássaros e flores, que são um pouco meus; 
As frases e afetos, que um pouco me pertencem? 
Eu gastei, incrivelmente, milhares de versos 
Para continuar, aos meus pés, o interior em obras. 
A estrutura amalgama-se, entre sentimentos em manobras, 
E palavras já sem forma reconhecível e de significados dispersos. 
 
 
 [miscelânea] 
 [18 de abril de 2023] 

 


domingo, 22 de janeiro de 2023

[Não] existem

 
 
 
Eu sinto-me bem, agora, e sei que é só por agora. 
O fantasma traz o teu olhar, com que me captura, 
e o mapa do teu corpo, que me alimenta um não sei o quê; 
uma imensidão, um tudo que era sem fim e que agora é nada, 
quando o nada existe, para além das palavras de outono. 
Outono com um teto de folhas que se precipitam, vazias. 
 
O ar, o silêncio e o tempo, os seus conceitos, estão petrificados e frios; 
o corpo pulsa, vibra, resiste à noite, está quente e vivo. Vive. 
Nem tudo é claro, estou acordado e nem sei se tudo é real. 
O sentimento é intenso e é de dentro. Não há medo. 
Não importa, não me importa, é sereno e é bom.  
É um fantasma, fim de outubro, e ninguém vai acreditar. 
 
Eu costumava ser um rapaz, depois um homem, normal.
Eu recordo, é apenas uma recordação que não se apagou;
Talvez ainda seja um espaço de letras e imagens.
 
 
 
 [miscelânea]
 [29 de outubro de 2022]
 
 
 

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Chamada




Perceber o frio dos teus olhos de Aveiro. 
Gostaria de perceber esse frio intenso, 
Que explicas com tanto frio, por extenso, 
Em mim, ainda envolto na ideia do teu cheiro. 
Concedo-te o gesto, mais do que um poema 
Na poesia de que não sentes gosto ou tema, 
O meu ideário de odor e das suas sementes. 
Também sei que nós nunca seremos suficientes. 
 
E nada, contudo, em tantas curvas, imenso, 
E, ainda assim, o tudo do que pode ser brisa. 
Sorrio com uma recordação, talvez, imprecisa, 
Como uma recordação pode sorrir do que penso,
No tanto que a memória sorri e onde somos melhores; 
Onde somos o bastante, maiores. 
 
Escuto a mesma canção, numa nova versão. 
Como de qualquer outra, como o que resta, 
Nós nunca dançámos, ou abraçámos, ao som desta, 
Mas, leva-me a ti, como o Inverno ao Verão. 
Encontro, com a dificuldade de um ancião, 
As imagens de um sorriso no teu rosto. 
Talvez possamos salvar, ainda, agosto; 
O pouco, ou nada, que te interessa, ou não. 
E, contudo, a despedida. 
E, contudo, a vida. 
 
Aveiro é uma outra coisa, que já não somos, 
E, como que a chorar, o violino não chora: 
Lava-me um imaginário de alma, 
Onde só existe salvação; 
Eleva-me uma sensação de dor, 
Uma dor incomensurável de ser feliz; 
Leva-me ao frio do contentamento, 
Onde não preciso de um abrigo. 
 
Eu não preciso de rimas, 
E, até, compreendo, 
Sem necessitar de perceber, 
O frio dos teus olhos. 
Já a guitarra rasga bem fundo, 
O arrepio de caminho, de arrepiar, 
Sem medos, noutra melodia, 
Sem mapas: 
A vida. 
 
 
 
 [miscelânea]
 [15 de agosto de 2022]
 
 
 

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Soletra-me

 
 
 
Saberás soletrar-me, desprendendo-te 
E deixando-te envolver na poesia. 
Ganha-lhe um qualquer sentido, 
Que te faça sentir, e sente. 
Não te atormentes com o sentido de ontem, 
Ou com o sentido que não fará amanhã; 
Se sou, ou não, o poema; 
Se, afinal, o poema és tu. 
 
Flui. Soletra-me, 
Pelas tormentas que ultrapassam as tormentas; 
Pelas brumas que ocultam as brumas; 
Pela luz que ofusca a luz; 
Pela alegria que ultrapassa a alegria. 
A poesia voa, sem voar, voa; 
Ri, de facto, sem rir de verdade, 
Acreditando que pode ser o que não é; 
Que posso ser eu; 
Só eu, ou, só tu; 
Nós?! 
 
Soletra-me, 
Do desassossego ao silêncio; 
Do oculto ao risível; 
Da impassibilidade ao êxtase; 
Do parco ao excessivo. 
Nas métricas clandestinas, 
Nas entrelinhas de algodão ou de arestas, 
Sente, à-vontade. 
Posso ocultar-me na seiva do ulmeiro, 
Da oliveira, do carvalho, do pinheiro, 
Ou de uma qualquer árvore; 
Ou ficar exposto nas fachadas, no ar, 
Ou impregnado nas retinas. 
Sou, apenas, aéreo, sentimental, sensível, 
Sem a sensibilidade das coisas pequenas 
E das pequenas coisas, 
A envolver e a ser envolto; 
Líquido, 
Para saciar uma certa ideia de sede, 
Lavar uma noção de mágoa, 
Não afogar a vida 
E parecer intransponível. 
Sólido, 
O suficiente para não nos esmagarmos, 
Para não nos sentirmos neblina, 
Para não sermos o tudo ou nada, 
Para parecer uma muralha. 
 
Soletra-me, 
Com a minúcia de quem desvenda, 
Com todos os sentidos, 
O aqui e o ali do que me compõe; 
Com a vontade de uma sede, se a tiveres; 
Nas tuas palavras, 
Em ti. 
 
Soletra-me. 
Estou, propositadamente, lento: 
Sorvo, demoradamente, a vida. 
 
 
 
[miscelânea]
[13 de maio de 2022]
 
 
 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Imediações




Ao alheio redondo empertigamento, de passagem, 
Um verso, como uma provocação gramatical, 
Como uma frase fora do ponto, à margem, 
Que me põe de parte e me leva aos poemas escondidos. 
A soma nem sempre revela um mesmo total 
E hoje, encontrei um novo lugar para ler a vida. 
Estenderam-se as palavras a baralhar os seus sentidos, 
Que são os meus e que podem ascender ao infinito, 
O modo de ver-me no fundo. 
No fundo, eu não estou lá, espalhei-me pelo mundo. 
 
É tão fácil comer a felicidade ou a própria fome 
E saciá-la aparenta ser o que nos consome. 
De que é feita a minha fome, a tua, a nossa? 
 
Seremos escravos numa determinada imaginação, 
Determinados sejamos para o não ser, sendo, 
No golpe preciso do nosso coração. 
Esqueço, simplesmente, a caixa, alheia, de apostas. 
Esqueço a incerteza da divisão, nas minhas costas, 
Como quem sustem a respiração para ver o fundo da água, 
Ou o que há no seu fundo; ou como mergulhar sem mágoa 
Na dor que é ser-se invisível. 
Visível é o verso gramatical e formalmente incorreto, 
Mas, variável e simultaneamente, sensível. 
 
 
 
 [miscelânea]
 [04 de maio de 2022]