quinta-feira, 29 de outubro de 2015

quinta-feira


palácio real do buçaco. actualmente, palace hotel do bussaco
antigo "palácio real" localizado na mata nacional do buçaco,
freguesia do luso, concelho da mealhada,
distrito de aveiro, em portugal.
actualmente, "palace hotel do bussaco".



poderia ser uma quinta-feira qualquer, 
num desses estados de entusiasmo extraordinário 
que são a fortuna de ser a fantasia e a ingenuidade. 
mas veio a matemática do entorpecimento reptilíneo, 
a escorregar pelos acidentes da geografia das palavras, 
e encontrei a ciência oculta da estrutura do meu corpo: 
necessito do calor e não dispenso o frio. 


[o significado do silêncio]


quarta-feira, 28 de outubro de 2015

qualquer eu


aveiro
canal central da ria de aveiro | aveiro | portugal


são só actos, pequenos actos, de felicidade, 
que podem chegar como um perfume, 
como encher a cidade de peito; e partir, 
como uma folha confusa, exposta ao vento 
do outono, numa alegria veemente. 
o meu carbono, de quarenta e oito anos, 
uma colheita romântica, desliza num canal 
de magia, como um moliceiro adaptado. 
serpenteiam-me as palavras, com gestos 
comedidos. hei-de encontrar o dia, a desfraldar 
o pão da alma; e as gaivotas, a desarrumar 
o horizonte, quando o horizonte é o meu lar. 


[o significado do silêncio]


terça-feira, 27 de outubro de 2015

de partir


aveiro
aveiro | portugal



houve um dia em que pensei que partia, 
queria ir para um céu onde existissem maçãs. 
um céu onde houvesse alguém que me desse 
um abraço lento e nesse abraço habitasse 
a bondade, sem as circunstâncias da brevidade. 
estava cansado, muito cansado, de ser apontado, 
agarrado à matéria das ideias que ninguém via. 

houve um dia em que pensei que partia, 
sabia que ficando, ou não, eu me iria perder. 
odiei, e queria, apenas não beber o fel; 
não queria ser o centro do cheiro e do som. 
a minha intimidade não era ser o primeiro, 
nem ser o sino a rebate, a má sina ou a esquina. 
queria respirar a preguiça dos afectos, no mar. 

houve um dia em que pensei que partia, 
sonhava com uma terra não prometida, 
sem promessas, sem o azedume das pupilas, 
sem o rancor da ponta do dedo indicador. 
sem a demagogia, apenas com o gosto da magia, 
o brilho certeiro de uns olhos a darem o primeiro 
bom dia do dia. e não pensava sequer que ia. 

houve um dia em que pensei que partia, 
sobravam-me as asas e faltava-me a paz. 
fechava os olhos e voava sobre a epiderme 
das fantasias, sobre os dias, para além do voo. 
e a pensar, ou sem pensar, cheguei aqui, 
sabendo que realmente nunca se parte: 
vamo-nos quebrando até ao desconhecimento. 

ainda quero esse braço (e um céu de maçãs); 
ficar no beijo lento da evidência, na retina, 
frente-a-frente, e guardar tudo isso na derme 
e na parte não perecível de quem eu sou. 
ser, sem promessas, fora e dentro da janela. 
e ter, sem política, na ficção plena da afeição, 
conhecedor da partida, mas sem hora definida. 


[o significado do silêncio]


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

menos qualquer coisa que, de qualquer forma, se perdeu por onde eu já passei e mais qualquer coisa que veio comigo


aveiro | portugal



já havia pais natais de chocolate nas prateleiras do supermercado. 
pareceram-me mais sisudos do que aqueles que tenho na memória. 
mas a memória doeu-me enquanto, ontem, passava a ferro as dez 
camisas, o conjunto de lençóis e os três pares de calças, que viviam 
no cesto da roupa lavada. dores que dobraram ao dobrar os muitos 
pares de meias, que, também, por ali habitavam. as cuecas ficaram 
para mais tarde. havia muita poesia nelas e não a quis dispersar. 
também não quis trocar, e retive, a emoção do peso da palavra: cuecas. 

caiu uma subjectividade persistente durante toda a noite, 
gotas de relativismo que conferiam brilho ao asfalto e aos passeios. 
a cidade quase não dormiu, à procura de uma forma desconhecida. 
senti a pulsação secreta da ria, à procura de competências sensoriais 
nas minhas aptidões cognitivas e em tanta coisa para ou por dizer. 
tanta coisa nos meus gestos e no meu reconhecimento de ter, e ser, 
parte de uma substância perecível comum, universal, e epistémica. 
talvez tenhamos mudado a nossa hora, só não sabemos em que sentido. 

tomo a tua direcção, na preguiça do sol que bate à minha porta. 
hoje, eu não consigo fugir do tempo e fingir, ao tempo, que tudo está 
bem nos cheiros do meu quarto e nos dedos que se soltam no, e depois do, 
vazio. há sombras que esperam deste lado das paredes e que nunca irei 
abraçar, apesar da sua espessura e de procurarem um nome para nós. 
abre-se a porta e entra o gato, que trás a luz da rua para me beijar a intimidade. 
o mundo não acabou. abre-se uma janela, onde não se enquadra a minha memória. 
eu não consegui morrer-te, comecei a recordar-me de mim, daqui até à brisa verde. 


[o significado do silêncio]


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

outubro


aveiro
aveiro | portugal



eu fico por aí, muito tempo, na privacidade da ria. 
gosto de observar o seu despertar, tão sem regras, 
quando o seu sorriso ainda é transparente e carinhoso; 
quando os seus gestos são uma dança intrínseca, 
a própria melodia, e propagam os aromas e os afectos. 
depois, cada um vai à sua vida e já não há como continuar. 
o regresso é sempre um recomeço dúctil e contingente. 

a ria acredita que o outono é de ouro que se espreguiça 
e que, mesmo quando verde, ela própria será sempre azul. 
acredita que há caminhos de palavras inventadas em sussurro 
de calorosos actos de amor (que talvez já não o seja); 
e eu, que são as palavras que decretam, não só a urgência 
do tempo e a intimidade do espaço, como a existência 
de todas as ignorâncias, na incapacidade de se ser mais além. 

o segredo, de alguns canais, é a impaciência na paciência dos versos; 
é o esperar que o lugar seja sempre o mesmo à chegada. 
a minha senda é a paciência na impaciência dos versos; 
é saber que à chegada é sempre outro o lugar; 
não esperar que o amor se anuncie com o desarrumar da água, 
ou que este perdure sem o generoso embalo de um seio.  



[o significado do silêncio]


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

estabilidade


canal dos botirões, ria de aveiro | aveiro | portugal
canal dos botirões | aveiro | portugal



sou o fio condutor da perspectiva, 
aconchegado aos versos de solvência, 
a quem todos os desassossegados têm direito. 

um voo rígido, de memórias, 
sem a resistência das interpelações 
inquietantes da existência. 
do outro lado do silêncio: a ria, 
a transpirar, levemente, sombras 
de perfumes ancestrais do mar. 
permiti, também, que o mar me fugisse. 
abraçámos os moliços, numa distância mental. 

no entanto, não posso deixar de pensar 
naquele movimento gracioso e transmutável, 
da tua silhueta tensa a beijar a intimidade 
do horizonte; na excitação da matéria 
dos teus sonhos; na facilidade das incógnitas. 
cinjo-me com a felicidade das interrogações pueris, 
na serenidade conquistada pelo passar do tempo. 



[o significado do silêncio]


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

argonautas


aveiro | portugal
aveiro | portugal



um azul grave, mas não absolutamente triste. 
depois, o espesso sentimento transversal 
de ultrapassar o movimento estético 
e fixar a contemplação, a visão e o sonho, 

dentro de ti e nos teus lugares esquecidos. 
uma sensação esotérica de te conhecer por completo. 
ser íntimo e subtil no teu ombro despido, 
enquanto lhe desenho elipses em diagonal cadente. 

a vontade e a bondade sobrepostas em todas as rotas. 
a liberdade de ondear num acorde crescente, 
na torrente de onde nascem os sentidos 

que transbordam os silêncios, deslocam as pedras 
no leito e amenizam toda a arquitectura, 
num dentro tão imensamente dentro e liso. 



[o significado do silêncio]


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

costumava ser eu


aveiro | portugal
aveiro | portugal



de corpo aberto,
escrevo contra o sol
(ainda há fogo nos meus olhos),
palavras quebradas pelo granito,
para abrigar a sombra
que vem do tempo do universo,
onde a paz é mais paz
e o amor é por, e não contra, alguém.



[o significado do silêncio]



sábado, 10 de outubro de 2015

recurso





«se nem fui e se nem foi coisa alguma» 
ali estava um ténue eu difundido em contraste 
um reflexo em confronto como um efeito de luz 
mais reticente do que a hesitação das gaivotas 

suspiro pelo transitório sentimento de ter perdido a alma 
mas como posso perder o que ninguém determinou que existia 
como posso perder o que nunca foi meu e o que ninguém tomou 
transitório entendimento de existência com sabor a terra 
alguém me há-de apagar esta sensação de ter raízes e pátria 

quando tantos de mim decretam a minha partida 
o cair fundo no fundo onde nunca se chega 
e de onde nunca peremptoriamente se parte 
é uma viagem de porta fechada e de coisas sem fim 
a forma de regressar à forma inexacta de desejar 
e de me inventar num horizonte desconhecido 

há um momento em que apetece ser o cansaço 
ser a espera e ser o abraço enquanto se é palavra 
a palavra sedenta que encontra o seu papel nas folhas 
que na loucura de não cair no outono procuram um ombro 
que seja a paz de um na paz do outro mais profundo 

parto, mas levo a minha pele 
lavo-a e retiro-lhe o perfume 
do fogo vagaroso do sobressalto 
no ranger das pontes abandonadas 
que preparam as profecias dos marnotos 
onde sou um moliceiro largado 
de encontro ao cais dos mercantéis 
ao sabor da ironia das marés 
e alguém a passar a pensar pensou 
que era para si a viagem 
que era para si o poema 
que pereci no verso 
onde eu costumava existir 
sob a forma de ilha 


[a ilha]


sexta-feira, 9 de outubro de 2015

girar


aveiro | portugal




outubro de novo de novo a hora dúbia 
tenho retirado cuidadosamente o amor 
dos poemas mais empertigados 
que espreitam com abraços catódicos 

conheço esse sentimento de tempestade 
que se dobra para dentro e que é carregar 
como que uma solidão universal no perfil 
e silenciá-la como se não tivesse um nome 

hoje não quero recordar o absoluto dos olhos 
as fechaduras do corpo entregue à boca 
e a pele das palavras sedutoras nos meus ouvidos 

é agora que vou girar ao sabor do vento agreste 
de oeste e impregnar-me nos tons do outono 
até cair no sono onde toda a música converge 




[a ilha]


quinta-feira, 8 de outubro de 2015

da ria


aveiro | portugal




são as mesmas mãos que me apontam o abismo 
dos anos que se contam em contas de água 
dos dias que disseminam solutos de solidões 
do amor de onde brota o caprichado cinismo 
aspergido com fôlegos e fulgores de paixões 

as mãos de água da ria 
sentada no cinzento das enxurradas 
a levar-me ao infinito da cidade métrica 
a lavar as indelicadezas da nostalgia 
com a delicadeza da amizade estética 




[a ilha]



terça-feira, 6 de outubro de 2015

na cadência do outono


aveiro | portugal




na cadência do outono um hemisfério norte 
uma ruga incompleta que conquista a fronte 
tão rente a um rasto de outras rugas alojadas 
na fonte da métrica da testa em chamas 
que se julgava tão soberana e tão plana 

na cadência do outono uma transparência 
que tenta sabotar o nevoeiro cerrado 
que deixou de ser metáfora no céu 
para conquistar o litoral absorto 
num súbito rasto de opacidade solta 

na cadência do outono um lapso 
o amolador chegou atrasado e imerso 
porque hão-de amotinar-se as tesouras 
que não sabem se a ilha está cercada de amor 
ou se o amor está cercado de antipatia 

na decadência do outono posso dizer adeus 
e revelar que não há destino em mim 
divulgar que me tenho mentido muito e muito 
abraçado ao silêncio de um sorriso 
ao dizer enquanto canto que não amo 




[a ilha]