sábado, 25 de fevereiro de 2017

Duplo traço encarpado



Procuram-me os dedos e os medos das palavras relutantes, 
que se alinham no estertor da linha imaginária, ou lugar- 
-comum, do horizonte que a névoa ainda permite, antes 
do abraço, o seu humedecido abraço de fim de inverno. 
As palavras servem-se da névoa para, primeiro, aderirem 
ao rosto e, de seguida, se entranharem na pele e fluírem 
pela imprevisibilidade das células, percorrendo o corpo 
para florescem, talvez ao sabor de um qualquer acaso, 
capricho sanguíneo ou arrepio cerebral analógico. Mas, 
o mar abre-se aos meus olhos, que se abrem ao mar, 
e assim fica o corpo de um sorriso, num dia suspenso, 
num colossal estribilho, entre o cliché do mar, dos olhos, 
da abertura e da iminência. Outra forma serena de viver. 


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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Extrospecção


A alegria aérea da ria e a indecisão do crepúsculo 
da cidade, fundem-se e assemelham-se a um 
capricho de névoa para embalar as palavras. 
O outro poema que está no grou de papel 
e eu estou aqui (o nome do lugar nada acresce 
ao poema), a olhar para o vazio, vocês sabem 
como é, de um pacote cheio, sete a nove gramas, 
de açúcar, mas não sabem porquê ou se eu sei, sequer.


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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Latente


Aqui mergulha a cidade, onde já me confundo como parte 
desta margem indistinta e a desobedecer à solidão e ao mundo. 
Não sei bem há quantos anos-saudade percorro estes canais. 
As palavras não o dizem. Nem os meus olhos dizem a forma 
da tua boca, do teu nariz, dos teus olhos… De todo o teu rosto 
completo pela luz do luar, o brilho solto que inventa labirintos 
para o amor desvendar em várias velocidades e compassos. 
Aqui, longe das areias movediças das conjecturas, as emoções 
são lugares contínuos e habitáveis: o fermento da existência. 
E a cidade prossegue, sob a ria, por passagens subterrâneas. 


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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Moleza


Gosto de dias assim, dias em que o rebordo das palavras límpidas 
espelha a azáfama do Sol, que se multiplica em beijos meigos, 
e o brilho dos pássaros no céu aberto. Céu de um magnífico azul 
tenso. Exemplifico o azul tenso, como aquele azul que os nossos 
olhos, não muito líquidos, nem muito secos, prolongam em bondade 
humana, de um horizonte a outro horizonte diametralmente oposto 
e a todos os seus confinantes laterais e sucessivos, num céu imaculado 
e de fundo inalcançável; absoluto, quando em alto-mar e cerca do 
meio-dia de um dia perfeitamente limpo e de uma qualquer primavera. 
Eu fico imóvel, com o corpo no tempo, enquanto os lugares passam. 
O lugar, como uma medida de tempo, e o tempo, como um destino. 


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domingo, 19 de fevereiro de 2017

Razões


Ria, ria, ria… Corpo emotivo de sentimentos em flor, à flor 
da pele; a sensação perene de presença e pertença inadiável; 
o subconsciente da constante partida sensível e exaustiva. 

A ria cheira a fim do mundo. Mas os seus olhos são um 
sorriso de domingo e quando diz: «Boa noite!» A poesia 
acorda em palavras que dizem o amor, numa forma 
eterna de companhia. Os seus dedos brincam nos meus 
olhos de criança entreaberta, onde não há nada a perder 
e as palavras ainda acreditam na inclusão de um abraço. 


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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Esfera


Não te lembras. Já não te lembras de mim. Lembras-te 
de uma certa imagem que constróis como absoluta, 
mais propriamente tua, onde já não sou cuidadosamente 
eu, ou onde já não vive o meu ralo reflexo, o meu olhar, 
ou a ideia que de mim tenho e existe, ao meu curto alcance 
de espectador exilado da pátria dos instintos. Sou, já, 
a imagem que o tempo guarda num inventário de tons 
legados pela acção erosiva da sua passagem e a projecção 
num aglomerado de palavras e histórias que os caprichos 
da memória redistribuíram num puzzle de ruídos e juízos. 
Talvez como a imagem que de ti guarde. 


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Sem legendas


Por ali, os gatos gostam de se enroscar por entre as silhuetas 
floridas de moliceiros e de figuras geométricas, que desconhecem. 
Ficam alerta, nessa protecção imaginária, numa realidade suportável, 
a aguardar por uma qualquer eventualidade fora do seu alcance, 
ou da acidental visita de um belo exemplar de ave, que se adeqúe 
à sua necessidade ancestral e instintiva de saciar a fome quimérica. 

Ali (ou em qualquer outro lugar), há uma eternidade, despudoradamente, 
muitos dos homens, velhos da minha idade, sentados ou de pé, 
enroscados nos casacos inquietos de inverno, de caso pensado, 
lançam os seus olhares ávidos e aflitivos sobre as mulheres, como 
se estas fossem presas, meras mercadorias, ou, propositadamente, 
aves, adequadas ao cortejo do apetite sexual, o seu único e possível. 

Observo, com pudor, com uma escuridão nocturna no olhar. Temo lançar 
um brilho indiscreto, ainda que simbólico, antes de ser, ou ter, outra alma: 
um pássaro; entre as cicatrizes da minha visão ou dos seus sobressaltos 
fugazes. Enrosco-me no poema, presa de mim mesmo. O meu retrato 
é uma linha na minha mão e guardo-a naquilo que é, vagamente, um bolso 
ou a ilusão de o ser, mas, ainda assim, um local à disposição e repetível. 


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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O bengaleiro


Tentarão catalogar-te pela roupa que vestes 
ou deixas de vestir; pela música que ouves 
ou ignoras; pelos livros que lês ou não procuras; 
pelo riso que dás, ou não; pelo que escreves 
ou deixas de escrever; pelo que afirmas, ou 
pela maneira como o dizes… Por qualquer 
outra forma, mais ou menos fácil ou indirecta. 
Posso emprestar-te um espaço do meu bengaleiro 
de guardar classificações, ou seja, o meu descomplicado 
bengaleiro de adiar rótulos alheios por tempo indeterminado. 


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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Poderia


Poderia encher-vos os olhos com palavras sobre as plantas 
e as suas flores, que, por diligências, artes, engenhos e zelos 
camarários, renovaram a beleza aos jardins, aos canteiros 
e aos vasos da cidade, trazendo uma imagem, desimpedida, 
e a esperança, de primavera. Povoaria as distâncias do vosso 
imaginário com as sementes e os frutos do aroma, do som, 
da textura, da cor. Ocuparia, intensamente, o vosso frágil 
corpo, com a luxúria das raízes de uma melodia erudita, 
para vos segurar, final, firme e inevitavelmente, com e pelos 
afectos, no rodopio emotivo, já fermentado e consistente. 
Mas, pergunto-me se o homem que abrolha junto ao centro 
comercial, para aí pedir sopas, há anos, de manhã até à noite, 
bem noite, terá, por gentileza, uma sopa para mim. Os versos 
não têm. 


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Saltar da página


Nada me dói mais do que saltar da página, quase a dormir 
e a esquecer o futuro. É quando se ouvem as palavras 
a soluçar e se vê o poema a queimar o poeta, pelas costas; 
é quando os olhos ficam vazios e já não choro as lágrimas 
dos outros, ou as minhas, e apago a luz à poesia, que fica 
entregue aos seus fantasmas ocos, mas estrepitosos; 
é quando me entrego a um tempo que já não me convém. 


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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Transitivo


O vento apagou a luz, mas não levou consigo as palavras. 
Abro a alma, fecho os olhos, não sei o que fazer ao corpo, 
e deixo-me cair no abismo da espera e dos pensamentos. 
Aí, conta-se o infinito, sem dor, sem medo, sem mágoa; 
dilui-se a importância, o tempo, a própria vida e o lugar; 
despe-se a superfície espessa dos dias, toma-se a forma 
da sombra como fé, sem a luz excessiva da esperança; 
desliga-se o vento e, por algum acaso, quase sempre 
se encontra o trilho que há-de salvar a ilusão de existir 
para tragar a hipótese da escuridão irremediável. 


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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Pano de fundo


O escritório espera por mim, depois do café que não foi, e eu não 
estou muito sociável. Não quero partilhar a brevidade do espaço 
e a cubagem do tempo do elevador com a estranha árvore de saltos 
altos que me ultrapassou, há instantes, na cerimónia da calçada. 
Não por me ter ultrapassado, mas pela ramagem imaginária 
e dolorosa que se lhe adivinha e pela brisa angustiante que exala. 
Ou, talvez, por temer que esse brilho seja o meu reflexo concreto 
e conclusivo, a minha natural imagem elementar e decadente. 
Eu subo, com o meu mau feitio, com as minhas raízes enleadas, 
mas vou pelas escadas, depois destas palavras escorregadias 
se colarem ao triste e húmido papel amarrotado: a minha pele. 


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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Céu azul de palavras


Há um céu muito azul, por vezes um pouco menos, 
ou seja, há um céu azul de palavras, onde cabem 
as coisas que deixámos por dizer e que nunca diremos; 
onde cabem todas as substâncias, as grandezas 
concretas e o não concreto do que dissemos e não, 
por outras formas que não as das próprias palavras 
ou por elas mesmas, as palavras, embora diferentes; 
onde cabem todos os azuis e todas as outras cores… 
No fundo, onde tudo, tudo, cabe na pele que eu sou. 

Há dias em que o céu azul de palavras se despe à chuva, 
com um sangue frio, com o sangue quente, como se fizesse 
parte dessa mesma chuva fria e quente. É, então, uma chuva 
de céu azul de palavras a romper por trás dos olhos do espelho, 
que é a alma, e que não se cansa de disseminar o azul real, 
que tanto, tanto, tentam justificar e que escolhe as ruas à sorte. 



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