terça-feira, 30 de agosto de 2016

do abandono


aveiro, canal cenrtal | portugal


sou o velho cliente sem amarras, sem promessas. 
chego devagar, como quem se dissipa na paisagem. 
sinto os lugares-comuns do velho cais, que emalha 
histórias com formigas nas palavras, cuja validade 
só é garantida no seu interior e ganham vida, e a vida, 
na erosão do tempo para se desfazerem nos dedos 
da imaginação. digo, ficamos na intenção do silêncio, 
o encontro com o indispensável suficiente, no caminho 
abstracto das raízes. um antigo mapa que se apeia 
no íntimo da hesitação até que a luz tolde o olhar. 


 [elipse]


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

a imagem de um domingo


da fonte dos amores - portalegre


a realidade tende a ser uma corrente fria e pessoal, aprendi-o na aldeia, 
ainda, ou seja, quando era muito verde e num meio de parcos recursos. 
criei, assim, um amor, numa espécie de destino que habita alguns poemas, 
com um enigma da visão anatómica e de remediáveis distâncias. 
que fantástica poesia, liberta das hordas de fantasmas desgrenhados, 
a corola de ciúme que sufoca o presente e onde a esperança é miragem. 
pouco mais sei dizer, que não tenham dito já, e posso em mais não acreditar. 


 [elipse]


domingo, 28 de agosto de 2016

ascensão


serra da penha - portalegre


subo, por um trilho antigo, por entre rochas 
com a superfície a esboroar. procuro alcançar-te, 
chegar a ti, com as palavras a desfazerem-se 
sob os meus pés, sapatos que calço nesta jornada. 

somos da mesma matéria, da mesma dimensão, 
mas estás sempre mais acima, acessoriamente 
mais alta, inacessível, aos meus inumeráveis 
e constantes movimentos. assim, assumo 
a substância do ar, a condição de ser vento. 


 [elipse]

sábado, 27 de agosto de 2016

retalho




a felicidade num rosto por onde se cruzaram tantos 
anos, com uns olhos transparentes, que me puxam 
para um mundo de simplicidade abrupta e despudorada. 
a felicidade que se amalgama na cidade, como se fosse, 
mais do que um largo mais, o seu próprio ambiente. 
alimentar os pombos, aparenta ser a sua missão de vida, 
e a minha, idiota, aparenta ser observá-la, nalguns momentos.

mas desenganem-se, não a julgo, não satirizo. sinto uma 
indescritível, e, contudo, natural cumplicidade; uma eterna 
e legítima gratidão: sou, também, um simples pombo. 


 [elipse]


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

cortesia


a «casa dos arcos» (a primitiva escola de desenho industrial Fernando Caldeira), posterior edifício da antiga capitania do porto de aveiro, actual sede da assembleia municipal e local de exposições - aveiro


deixo que as janelas se definam, que descrevam a estação; 
que o relógio se acerte livremente na enumeração do tempo. 
entro na máquina da vida de onde procede o pão e a água; 
vou, na inevitabilidade e na precisão, para a inexactidão do dia. 
cumprimento a senhora que varre alguns passeios da cidade, 
os passeios onde com ela me cruzo, que só neles vejo, neles 
conheci e só dali conheço. é um desejo sincero de um bom dia, 
de segunda-feira a sexta-feira, os únicos dias que nos encontram, 
e a felicidade de ter um, de volta. ela, sem saber, mais do que 
varrer os passeios, varre-me as palavras e os silêncios, sombrios. 


 [elipse]



quinta-feira, 25 de agosto de 2016

o chão elíptico


(passadiço entre marinhas de sal e piscina de água salgada [em construção] - aveiro)


pretexto para a poesia, o teu enlace metafísico, 
razão de amor, encontra-me desprovido de qualquer 
subterfúgio. nascem alguns poemas mais. entram 
palavras acidentais de personagens mais casuais, 
ainda, ainda na sua forma física e o silêncio onde 
nascem alguns poemas mais doces do que os ovos 
moles, num acto perfeitamente amador de querer, 
de dar, de ter, de olhar, de escrever, de ser, de ficar: 
a fragilidade de quem está em construção, o abraço 
que entrego com o desejo sincero de feliz aniversário. 


 [elipse]


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

o estranho ritual


puxou o par de chávena de café para si. 
retirou o pequeno pacote de açúcar, 
de papel, que se encontrava pousado 
no pires, rasgou-o num dos topos, quase 
completamente, mas com cuidado. 
despejou o conteúdo, propositadamente, 
no pires, e olhou para o seu interior. sorriu. 
depositou ali a sua vida. fechou o pacote, 
com três pequenas dobras bem vincadas, 
sem perder o sorriso, e, sorridente, sorveu 
o café. pousou a chávena delicadamente, 
fitou a janela com a triunfante expressão 
dos felizes e ausentes e assim permaneceu 
num o último acto, como se fosse o dono 
do tempo; se bastasse a si mesmo; e não mais 
necessitasse do mundo. para, assim, o abandonar. 


 [elipse]



terça-feira, 23 de agosto de 2016

labirinto elíptico


aveiro | portugal


algumas promessas iniciam na intimidade do mar, em corpos 
reféns de um medo quase irremediável e imobilizador, 
em noites muito escuras; ao som selvagem desse mesmo 
mar, cujo aspecto desgrenhado apenas se alcança adivinhar. 
é assim nalguns cenários de um provável amor que, provavelmente, 
procura horizontes de uma boa esperança; algo que faça emergir 
o corpo de uma alma que imerge em enredos imprevidentes; 
alguma qualquer coisa que salve da coisa que se desconhece 
e dos espaços que não existem, fundados na insegurança. 
o que todos sabem é que há seres humanos perdidos. mas, 
como explicar os poemas e as promessas que partiram? 


 [elipse]



segunda-feira, 22 de agosto de 2016

nas mesmas aberturas da elipse


aveiro | portugal


a luz mudou as janelas, que mudaram a estação, 
e inventou novos locais para as mesmas sombras; 
trouxe a incerteza e o mistério ao azul do céu limpo; 
ilumina pontos e partes que não existem nas ruas, 
que são as mesmas, as das deambulações menos 
complicadas e com um não sei o quê que me leva 
no pouco que possam valer as palavras, nos diversos, 
e numerosos, silêncios e seus múltiplos destinos. 


 [elipse]


sábado, 20 de agosto de 2016

demora



[rua dos mercadores, pastelaria santa joana.] 
aqui sou eventual, sem lugar habitual, mas previsível 
por um café e um moliceiro. sem tempo padrão 
de permanência, um euro depois e estou na rua. 
aqui não tenho nome, mas, seguramente, uma 
alcunha, conjecturável, que não me consome 
o tempo ou inquietação. aqui reconheço rostos 
com géneros, mas sem nomes ou sobrenomes, 
sem alcunhas ou qualquer etiqueta linguística, 
eventualmente com histórias e frases sem 
contexto, no meu silêncio universal. aqui é uma 
outra coisa, um outro tempo, um outro lugar. 
gozo, com lentidão calculada e voluptuosa, 
o café e o moliceiro, e emalho versos mentais. 


 [elipse]


sexta-feira, 19 de agosto de 2016

rua elíptica





os múltiplos cheiros a bafio, vinho tinto e aguardente, 
saltam para a rua, em atropelo, como quem foge 
dos mistérios dos espaços densamente sombrios 
e repletos de infortúnios de ainda mais estranhas sinas; 
como se, também eles, exigissem a heresia urgente 
do ar da ria. e colidem com o meu corpo instintivo, 
para logo se lhes perder o rasto. estão a salvo. 
não me detenho nesta parte da cidade, não tenho 
ombros suficientes para albergar tantos fantasmas. 
por outro lado, vão-me escasseando as forças, 
para transportar fardos tão pesados; não tenho 
apetência para degustá-los na sua forma líquida; 
e a sua forma metafisica suga-me para o seu mundo, 
onde se perde o local de carga e o corpo poético 
se transforma num embaraçoso e infeliz voo etílico. 


 [elipse]



sexta-feira, 5 de agosto de 2016

ao sol


aveiro | portugal



exactamente no mesmo banco de jardim do diminuto rossio, 
onde, há instantes, quando ainda havia sombra e ainda era 
manhã, se sentava um jovem casal de excitados apaixonados, 
que trocavam múltiplos afectos, como se quisessem fundir-se 
num único corpo, está, agora, um homem que abandonou o seu 
corpo único, excessivamente vestido, deitado ao sol abrasador. 
calça uns sapatos impecavelmente pretos e engraxados, 
sobre umas meias de um negro muito enxovalhado. veste 
calças, com indícios de vinco, outrora, certamente, imaculado, 
num tom creme muito escuro, talvez, aparentemente, mais 
escuro, pela generosa porção de sujidade acumulada que, 
em grandes extensões, se transformou em luzidias ilhas 
gordurosas, sujeitas por um cinto preto de fivela reluzente, 
como um cromado impecavelmente limpo; camisola amarela, 
copiosamente encardida, que se sobrepõe a uma outra de tom 
azul claro, muito vivo, rematadas por um casaco de meia 
estação, que terá visto todas as estações do ano, várias vezes, 
de cor verde, muito desbotada. cor protegida, ainda assim, 
pela mesma substância luzidia que se vê nas calças. 
da cabeça caiu um boné cor-de-laranja, novo e limpo, 
na aparência, tornando visível o pouco, e certamente teimoso, 
cabelo grisalho. um conjunto peculiar, numa aura rosa. 
a porção visível de pele – rosto, mãos e parte do crânio – 
apresentam um tom extraordinária e invulgarmente encarnado. 
antes de se abandonar, assim, guardou, num misterioso cuidado, 
debaixo do banco, um vulgar saco de plástico, com alças, de cor 
verde, com roupa dentro. roupa merecedora da protecção 
de um pouco de sombra e de possíveis mãos alheias. 

vou em seu auxílio, contra a corrente dos que passavam 
indiferentes. protejo-lhe a cabeça, com o boné que caíra, 
e improviso uma almofada, com o saco de plástico verde 
que contém roupa, enquanto lhe pergunto, insistentemente, 
se está bem, se precisa de ajuda, tocando-lhe, gentil 
e simultaneamente, para que regressasse ao seu corpo 
abandonado. e ele regressa, a espaços, imperturbável. 
por momentos, penso e sinto que ele é um possível eu, 
que me chega do futuro próximo e próximo do ideal 
de existência de poeta supremo, aquele que já não 
necessita do próprio corpo para ser e ser, sumptuosamente, 
uma essência metafísica. nisto, o homem, responde-me 
numa estranha língua, desprovida de qualquer sentimento 
e desacompanhada de movimentos. talvez a língua exacta, 
necessária e merecida, para os que fazem perguntas tontas, 
não sei se em agradecimento ou se me pede, amavelmente, 
que me afaste. afinal, ainda não se paga para se entregar, 
assim, o corpo ao sol e a ocupação de um banco de jardim. 

afasto-me, atenta e relutantemente, e ali permanece, o homem. 
passam horas e passa o sol. enquanto houve sol, sentava-se, 
pontualmente, indiferente a tudo o que o rodeava, muito 
longe ou demasiadamente perto de si. e dessa mesma forma 
partiu, pelo seu próprio pé, erecto e sem hesitações. deixou 
para trás a sombra, à qual se juntou a sombra da árvore 
e a sombra de um país e de uma grande alucinação política, 
daquelas alucinações que são compostas por um conjunto 
de múltiplos delírios, que se alimentam, naturalmente, 
com o dinheiro que o povo há-de dar com um sorriso 
absorto, sob qualquer pretexto. nesse mesmo banco 
de jardim, há-de sentar-se a jovem que passeia o cão 
ao crepúsculo do verão, à hora dos telejornais, como se, 
dessa forma, se pudesse fugir às, ou aplacar as, desgraças 
do mundo. eu sigo para onde se consegue alcançar um 
horizonte onde, quanto mais me afasto de mim, mais 
de mim me aproximo, acreditando que vale a pena. 



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quinta-feira, 4 de agosto de 2016

tropeção


aveiro [nas salinas] | portugal


tropeço num amor, não sei se antigo. houve um tempo em que era 
esse amor a tropeçar em mim, não sei bem há quanto tempo. 
parecia-me escrito a lápis, na memória, como que uma névoa numa 
página intensamente amarelecida, não sei se pela simples passagem 
do tempo, ou se pela acção da luz numa longa exposição, ou se 
sempre foi, naturalmente, assim: envelhecida – é um pormenor. 
não lhe encontrei qualquer etiqueta, o que é normal, não costumo 
fazê-lo. com o tempo, as classificações perdem o sentido e mesmo 
aquilo que era desespero, tende a ser, apenas, passado. e ali estavam 
as feições femininas, a crescerem num esboço e cada vez mais nítido, 
cada vez mais cheio de razões. os pontos abstractos a apontar para outros 
pontos mais abstractos, ainda, e a contarem as histórias de uma terceira 
pessoa. histórias que, já nesse tempo, eu não me recordava de terem 
sido exactamente assim. um amor que, se calhar, não era exactamente 
meu. 


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quarta-feira, 3 de agosto de 2016

a laguna


aveiro, canal de são roque | portugal


a laguna... a ria dá para o mar, é o poema; é a água 
que é a alma de aveiro, e convida ao olhar, ao sonho, 
à nostalgia de diferentes sensações. encontra-se a vida, 
um pouco antes do fim do poema, como se este, 
o poema, fosse o próprio fim do mundo e o encontro 
com a ria resumisse toda a existência. 


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terça-feira, 2 de agosto de 2016

os trilhos


salinas de aveiro, aveiro | portugal


os trilhos no meu interior, para uma visita guiada, a pé, evoluem 
com os olhos. sente-se-lhes, aos olhos, o subjectivo à flor da pele, 
em progressão síncrona para o raciocínio profundo, quando tentam 
dar-lhes, aos trilhos, e ao que a partir deles se vê, uma forma verbal. 
eu, por outro lado, vou aprendendo o silêncio, naquela forma tranquila 
de encontrar a paz onde as palavras são excessivas. nem sempre foi 
assim, sei-o e vejo-o no grão abstracto das fotografias antigas. 


 [elipse]


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

entre o poema e a vida


canal dos botirões (canal da praça do peixe), aveiro | portugal


talvez não se escolha entre o poema e a vida. 
talvez porque, a vida, por vezes, também, 
é o poema. ou este é um princípio, ou uma certa 
ideia, de vida; pelo menos, uma margem humana. 
reservo o raciocínio e as suas derivações, como quem 
adia a identidade, a revelação e o desequilíbrio. 
vem um reflexo de sal da elipse, o hálito a ria 
e a mar. nenhuns lábios respondem. ninguém 
no moliceiro de palavras. palavras que fogem 
por entre os dedos simples do fim de um verso. 
o moliceiro oscila sob o peso da respiração, como 
se tivesse dado a volta ao mundo pela inspiração 
da ria, e todas as suas palavras se soltam da fórmula 
precisa, esgotas de uma viagem desconhecida 
e inexistente, formas abstractas de uma mesma 
ancoragem. e todas elas significam e dizem: amor. 


 [elipse]