domingo, 31 de julho de 2016

em tempo de acalmia


na serra de são mamede, portalegre | portugal


em tempo de acalmia 
o vento enfunou o poema 
e eu soube que eras tu, 
em cima de dois ou três sonhos 
e a entoar uma ladainha 
sobre um sentimento profundo 
da vida que cruza todos os estados 
do tempo. e eu, sentado, 
como uma rocha magmática 
de profundidade, mas sem intrusão, 
comecei a deslocar-me, 
tão imóvel, sobre a profundeza 
da sombra do pináculo da serra 
de são mamede, na tua boa, 
e na tua menos boa, direcção. 


 [elipse]


nova receita




é tarde, para acender a fronteira. 
por outro lado, a fogueira é desnecessária. 
o fogo do amor apaga o fogo 
feito antigo, como antigamente. 
o corpo insiste que há uma nova 
receita e os brioches doces ficam 
esquecidos sobre a mesa ardente, 
sob o sol inteiro e entusiasmado, 
junto a duas almas salgadas, 
com os sentidos ainda mais frescos. 


 [elipse]


cenário «a»


[intencionalmente "desfocada"]


a confusão anda desordenada no palco da poesia. 
alguém me procura no poema que eu não sou; 
alguém me procura o poema que não está. 
o ofício abafa toda a possibilidade de ser e de estar 
e a peça segue, de poema em poema, onde os personagens 
partem e regressam ao mesmo palco, gravemente indeciso, 
em cenas perigosamente repetíveis, que a cada um deixam 
uma sensação, um estado, um sabor e, eventualmente, 
um desejo mais tradicional, como que uma ombreira. 
gerações sucessoras dos personagens do personagem inicial. 


 [elipse]


sábado, 30 de julho de 2016

base


coimbra, escada quebra costas - excerto da estátua da tricana | portugal


um princípio de ideia de movimento 
e de sustentáculo, dentro a minha solidão 
que não é um queixume ou angústia. 
os teus passos continuam na luz das ruas, 
cruzam-se com o burburinho da cidade, 
e, distintamente, com o meu. 
como explicar os teus pés no meu olhar? 


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luz


ponte da barra, praia da barra - ílhavo | aveiro | portugal


apenas luz, a imitar as palavras, 
a projectar volumes e movimentos. 
a expor a adjacência ou afastamento. 
o princípio do dia nas mãos do brilho, 
a distinguir-nos das sombras 
e a amalgamar o seu cheiro no meu. 
tomo-lhe o gosto, sem pensar na hora, 
sem saber se a perdi. não há outra razão, 
enquanto a luz não a toma. apenas luz. 


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sexta-feira, 29 de julho de 2016

até ao destino




um julho a mostrar a estação do verão
com janelas de luz e azul, onde o verde 
ainda mexe, vertical, à procura de uma 
esplanada com algum sentimento, ou 
onde este se possa, pelo menos, inventar 
e matar a sede elíptica que o transforma 
em palha à procura de sentido. 
talvez possamos consertar os excessos 
do mês, incompletos e imperfeitos, 
de acordo com a nossa natureza, 
com a canção do nosso amor, 
que não tem palavras de outro invento, 
e com o sol à cabeça e o universo dentro. 


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de vento


aveiro | portugal


os pensamentos aparentam ser inabitáveis 
e as pombas procuram abrigos imaginários. 
é a cidade exposta as rajadas de vento, 
com turistas com relógios nos olhos, 
em voos rasantes à resiliente arte nova, 
parte de um tempo descontínuo, 
de uma ria mansa que chega em voz alta. 


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as palavras também


aveiro | portugal


as palavras também servem para isolamento, 
em vários sentidos, em múltiplas razões; 
também têm todas as serventias que ajudam 
a dificultar a vida, e fome, para dar em factura. 
uma mesma palavra transfigura-se nos cambiantes 
da luz, do som, do espaço, da duração… 
com a cultura, no ambiente, com a companhia… 
no estado emocional, no movimento ou na inacção… 
mas são mais um meio, por vezes a meio, 
de caminhar, de chegar, de estar, de sonhar… 
daqui, lanço palavras de abraço, de força, 
de entusiasmo, de energia, que não sei 
como vão, ou se vão, sequer, chegar. 


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: continuação


aveiro - excerto de mural de azulejos | portugal


descasco um fado alegre, 
onde pertenço por afinidade. 
fico um pouco mais neste odor 
sem tentar percebê-lo no tempo, 
sem tentar conter o seu espaço, 
sem querer, ou saber, medi-lo. 
o relógio aponta para qualquer dia, 
numa hora precisa da tarde e sei que é 
tarde. cheira a tarde, sente-se o tarde 
a crescer nas narinas e sal nas salinas. 
é um tarde em flor de sal, odor de tarde. 


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fronteiras


aveiro - excerto de mural de azulejos | portugal


gosto dos horizontes transparentes que as letras 
me dão e que me trazem a cidade meticulosa. 
temos que viver com a fronteira das coisas 
ou seres que, de uma forma ou de outra, 
partiram e que chegam, por vezes, sob 
a forma de odor. um odor pacificador, 
porventura, mas, simultaneamente, 
inquietante, para nos recordar 
as distâncias. pode ser fétido 
ou um perfume agradável, 
persistente ou efémero, 
mas é uma presença, 
que as nuas letras 
me atenuam. 


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terça-feira, 5 de julho de 2016

olhos de ria


aveiro  |  portugal


provei do não e do sim, 
com olhos de ria a erguer imagens de terra 
e, um dia, inventei um poeta doméstico 
para escrever versos lá-lá-lá, 
que acabou a suturar incisões das sombras, 
com uma visão ofuscada de luz. 
noutro tanto construí a cidade à parte, 
parte de uma mesma cidade de ria. ria que fala, 
e arde, quando não lhe entra um pouco de mar 
na brisa ou num intercâmbio de azuis e verdes 
cúmplices. e cresceram poetas no tropel 
do mesmo, em cidades em si. hoje, só blá-blá-blá, 
numa mudez perfeita, ergo a ria dos olhos 
para te ver deitada, a inalar o azul. 


 [elipse]


segunda-feira, 4 de julho de 2016

elipse das janelas


aveiro | portugal


nas ruas desfilam as novas colecções de amores. 
já as janelas se vestiram com a estação actual, 
à luz de um tempo a condizer, com as diagonais 
aparentemente correctas e as cores coerentes. 
ou tudo se aproxima da ilusão da recordação, 
que talvez procure o conforto da conformidade 
para as direcções dos sentimentos e os sentidos 
do corpo, que procura, ainda, o que não se sabe, 
sem saber bem o quê ou para quê, enquanto. 


 [elipse]


sábado, 2 de julho de 2016

sem-fim





o amor é, muitas vezes, uma língua mal interpretada, 
uma língua onde titubeamos a descodificação, 
entre os sinais ou os sons. é a linguagem ancestral, 
e original, da alma. os idiomas modernos perderam-se 
da sua dimensão, da sua amplidão angular, pictórica 
musical, temperatural. quando compilada pela caligrafia 
da alma, leva-me a ti, que é quando eu mais quero 
que venhas, carregada de sinais que eu possa intuir 
e inferir pela certeza de lamber, saborear, tactear, 
cheirar, ouvir… e pelo uso de todos aqueles sentidos 
de quem perdemos o nome e que entram contigo 
sem fim. 


 [elipse]


sexta-feira, 1 de julho de 2016

as noites que contam


aveiro | portugal



a envolvência da noite, que a uns devolve 
a experiência dos espaços confinados, 
que a outros devolve a sensação de conforto 
e que a outros, ainda, não devolve nada, 
instalou-se na humidade litoral, impelindo 
o corpo ainda mais para dentro do corpo, 
que se fixa na parte mais quente da memória. 
são os estilhaços das janelas da nova estação 
que devolvem o corpo a condição humana 
e à demanda das respostas que a natureza 
nem sempre dá, talvez por falta de vontade 
mais do que por não as ter. nisto, por vezes, 
chega a lembrança de um abraço, num silêncio 
ruidoso que alterna com o ruído silente. 
ou, talvez seja tudo uma mera invenção, 
como que caprichos dos sentidos para a razão, 
que não sabe escrever o amor visível nos olhos. 


 [elipse]