terça-feira, 28 de outubro de 2014

haverá quem nos conte





ergueu-se para nós a noite 
numa aspiração sentimental 
a pele reconhece o seu içar 
e a noite o eriçar da pele 

reserva-nos uma ternura 
um afago por uns instantes 
quase uma razão convergente 
e vemo-nos de olhos fechados 

quase nos vestimos com ela 
e é ela que nos despe até a alma 
e nos aconchega a simples história 

o espanta-espíritos mergulhado 
reconhece a música do coração 
a melodia da noite que te escrevo 




segunda-feira, 27 de outubro de 2014

preliminar





… abundante. abundantemente, assim, 
sem contexto. serve-te do que mais te fizer 
feliz; do que mais te apetecer; do que mais 
te agradar; dos afectos… em abundância. 
fecha os olhos e ouve… ouve o meu marulhar 
no poema, mesmo junto ao abismo tatuado 
na orla da praia. desperta todos os sentidos… 
em sincronicidade com todo o que te rodeia, 
te encontra e desencontra. envolve-te 
no significado abundante da harmonia e todas 
as suas agitações, arrepios e serenidade… 
ouve, cheira, saboreia, observa, tacteia, 
percepciona… os vários tons das várias cores; 
a energia e as várias sensações da tua pele; 
o que vês e sonhas; o que sabes e não sabes; 
os vários tons das várias palavras; o vazio… 
deixa-te fluir numa amalgama abundante… 




domingo, 26 de outubro de 2014

lado b





uma fatia de outono aguarda sobre a mesa 
ainda tem portalegre colada ao corpo justo  
parte um fragmento de encanto que ficou 
no súbito outubro quente que lembra verão 
e não fosse o inesperado odor forte a amor 
e a pão do outro lado dessa história nativa 
os meus lábios agradeceriam a tua ausência 
assim como os sobreviventes dos cataclismos 
agradecem as sórdidas paredes sólidas 




sábado, 25 de outubro de 2014

suspenso





esta noite sonhei com lobos de novo 
cercavam-me num círculo perfeito 
a cobra branca ficou imóvel e calada 
o meu olhar ficou no líder da alcateia 
e o grito e a respiração presos no peito 

respiro 
um violino emprestou-me a alma caída 
hoje esqueci-me de almoçar o labirinto 
e o mundo ficou num silêncio caiado 




sexta-feira, 24 de outubro de 2014

disposição das partes





há poemas sem solução que se arrastam 
nos versos de folhas já usadas ou 
em qualquer outro pedaço de papel 
suspenso de efeito munidos da palavra 
munida de quebra-cabeças solúveis 
palavra que não cai no outono a palavra 
que num acto de contrição observado 
adere ao corpo e consome quase meio século 
amor  




quinta-feira, 23 de outubro de 2014

por onde vou revisitado




os sete véus que te cobrem 
e o que sobra da minha vida: 
a loucura de querer ser 
  
às vezes tenho vontade 
de ser suposto salvar-te 
estendido nas voltas do mundo 
entendendo a humanidade 
em todas essa coisas pintadas 
e figuradas em destaques 
que banalizam o horror alheio 
nessas e outras pequenas coisas 
que me consomem absurdamente  
e que me fazem duvidar da generosidade  




quarta-feira, 22 de outubro de 2014

para onde vou




sem deixar de ser intenso, deixo-me 
abrandar. sem abandono. quero 
entender este não saber bem para 
onde vou. sei para onde quero, e posso, 
ir. não faço conjecturas ou previsões, 
quero, assim, apenas, recordar-te 
para não me voltar a esquecer de mim... 




terça-feira, 21 de outubro de 2014

de onde eu venho



não te apresses a ler-me! 
talvez me faltem as palavras. 
é possível que encontres um adeus 
onde não há tristeza. há renovação. 
o meu caminho é um rio sem fim, 
onde, por vezes, não encontras 
sentido; onde, por vezes, vou 
directamente ao fundo, e esta 
é só mais uma vez… sem drama! 
o horizonte fala-nos de tempestades 
fáceis, perdidas em pensamentos 
com mar e areia e regressos de amor, 
depois de ver… mas nada é tão fácil 
e eu vejo, ao fundo, fundo, o mar; 
redes rotas com olhares vigilantes, 
e adivinho a cidade, num só verso. 
talvez um dia eu volte a esta página 
de pó de sonhos com pó de estrelas, 
mesmo depois do poema se tornar pó 
e não me traga o hoje como eu sou. 
por agora importa o sorriso e sacudir 
do palco o gosto da tristeza.  




[10 de outubro de 2014]

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

por onde eu ando





ai, o crepúsculo e a suas urgências!
a cidade corre para casa e eu fujo
para a praia, onde o horizonte célere
desmaia nos meus braços, enquanto
guardo os meus reflexos, que provêm
de ti.  ainda estás comigo nesta luz
fugidia que é o fim do dia e diluímo-nos
no mar das recordações que deixaste
à flor da pele que se eriça lentamente.
reinvento-te. aflora o som de um beijo
encontrado, sem conhecer, sequer,
o som dos teus passos, e já a noite
me segreda, suavemente, o calor
do teu corpo, que me inflama num
abraço. e eu, de braços ocupados
por horizontes breves e inanimados,
procuro a vaga agridoce das tuas cores.
por onde andas, meu amor?




quarta-feira, 8 de outubro de 2014

ao vento






as minhas palavras não mudarão o mundo,
mudam-me a mim, numa via sem fundo.
o lugar prossegue e insiste,
mas o vento geme não por eu ser triste,
da mesma forma que o vento não uiva
por eu ser um lobo. sei o que o vento é.
por vezes sou eu, a beijar a nuvem ruiva,
apenas o mesmo ar em movimento de fé.




terça-feira, 7 de outubro de 2014

por aqui





as palavras caem como as folhas no outono 
e nestes instantes afundo-me no banco, 
num qualquer lugar, e descuro o flanco: 
abandono-me nos abraços do sono. 

sobrou-me o mesmo setembro em outubro, 
o mesmo que me faltou em setembro; 
o mesmo onde tracei trilhos que desmembro, 
os que resistiram às ondas com que me cubro. 

saberia acordar nos braços do desjejum do dia, 
ainda palavras agarradas inteiramente à frase 
inteira do sal grosso na manhã de uma melodia, 

e encher a causa com a paz que extravase 
em todas aquelas dissonâncias da harmonia, 
que me chegam num mesmo e sempre: quase. 




segunda-feira, 6 de outubro de 2014

coisas





é a intimidade do presente a criar futuros aos factos. 
não encontrei o sentido único no sentido das coisas 
que abarcam múltiplos e complexos tempos verbais. 
talvez tenha andado em contramão; talvez, em hiatos, 
tenha deixado de existir o passado nos meus olhos 
que sempre se apagam quando se abraçam aos teus. 
mas há tanta coisa incompreendida num improviso...




domingo, 5 de outubro de 2014

!





dobrar o tempo e o espaço como
se fossem uma folha de papel
romper o casulo e procurar a fé
a fé que não tenho e talvez não
a fé que perdi com a ingenuidade
depois de tudo e sem desculpas
o salto um som um odor o calor
um pouco mais que não morresse
nos polissílabos da dor inevitável
que imagina a sua própria alegria
nos vincos do mar que se converte
à metáfora do meu renascimento




sábado, 4 de outubro de 2014

cristalização





as memórias de mãos dadas com a lua
o meu coração que volta atrás no universo
e eu cercado de palavras por todos os lados
num labirinto de espelhos vestidos de luz
quem nunca saiu do seu próprio corpo
não conhece a aflição de querer regressar
a ele e poder encontrá-lo já ocupado




sexta-feira, 3 de outubro de 2014

à noite





aguardo que o teu rosto nasça
à noite não há gaivotas na praia
o ar procura o refúgio do mar
onde as sombras escorrem lentas
e os sons são canções de embalar
os molhes fluem dos meus olhos
e o meu mundo cintila nos teus




quinta-feira, 2 de outubro de 2014

sequela





vejo que jesus morre todos os dias
várias vezes por dia sem antes
ressuscitar e eu podia tentar
explicar-me o nada de tudo
e nada mas estou na encruzilhada
de uns poemas um vínculo ténue
de palavras que vejo tão simples
que se entrelaçam para segurar
o momento que se perde do outro
lado que se desenha na hesitação
da luz das estrelas esse labirinto
celeste que não pode conjecturar
o nosso destino com os mesmos
silêncios das manhãs que dormem
a vida quando começa nunca é
igual às outras vidas e é assim
dia após dia conjugados de forma
diferente onde quase existimos




quarta-feira, 1 de outubro de 2014

sob


  

algures na noite no mar do amor naufraguei
uma-a-uma as feiticeiras que me salvaram
previram futuros de amores sem sucesso
e que todos os dias nasceriam assinalados
por esse desígnio astral onde não sei quantas
vezes renasci agarrado ao toque de vazio
de um abraço solitário onde sorrio em silêncio