sexta-feira, 30 de setembro de 2016

epílogo: elipse


aveiro | portugal


começaram por ser janelas e imaginação, 
por onde entravam a luz e o ar. um ponto 
de partida e de chegada de cores, de odores 
e de viagens, que se poderiam confundir 
com a realidade. fragmentos de um tempo 
magnífico que seguia a constância dos relógios, 
mesmo quando esta era posta em causa 
por mecanismos imperfeitos, avariados, 
ou, simplesmente, cansados. através delas, 
aprendi a deformar o tempo e o espaço, 
para abreviar o fuso horário, encurtar 
as distâncias e dar corpo à matéria: 
a invenção das elipses, em sistemas 
que gravitam em mim e se expandem 
como que em múltiplos abraços de inclusão. 
algumas das elipses, desse e deste tempo, 
correspondem a imagens glamorosas 
de uma certa perspectiva do perfil 
de espirais sobrepostas, ou representam 
figuras de estilo, embutidas no poema 
como se fossem pedras preciosas, ou, 
também, atalhos circunstanciais.
continuam a ser janelas e imaginação. 
uma certa ideia de janela. 


 [elipse]



crença



o que sabe o alinhamento imperfeito dos planetas 
dos teus rios, se não o alimentares com a tua fé? 
sabes quem és, embora vivas, sem saber, nos escritos 
de estranhos que não te podem ouvir, nem adivinhar. 
assim, também há poemas que dizem sem dizer, 
no alinhamento das palavras, essência maleável. 
pudesse o poema explicar-se e não seria essa a elipse 
que cada um desenha na sua imaginação; seria: 
a pobreza da poesia. 


 [elipse]



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

geometria



não sei se por fingimento predatório ou se por genuíno pudor,
os pássaros escondem o bico debaixo das asas quando penso
na geometria do teu corpo. generosa natureza, que não lhe criou
arestas! apenas os mistérios e os abismos, encantatórios, das suas
curvas, dos seus cheiros e sabores, do seu calor e textura,
onde me perco em aventuras que sonho mesmo acordado,
em qualquer lugar, e mapeio-o, como um cartógrafo antigo,
deixando espaços em branco que tentarei preencher mais tarde.
fico, novamente, a olhar para o ponto indefinido onde foste corpo
que os meus dedos, se pudessem, conseguiriam explicar. sei agora
que os silêncios também sabem abraçar e beijam; como os meus olhos
te puxam para dentro de mim, mansamente, para te poder aclarar.


 [elipse]



unidade



fico a olhar para o ponto indefinido onde foste
corpo que os meus dedos não poderiam alcançar.
sei agora como as palavras se enroscam e abraçam;
como dão formas ao corpo que materializam,
e/ou ao corpo que delas se alimenta.


 [elipse]


o acaso ao fim da rua




a loucura tem o valor que o espaço e o desejo perderam. 
aqui os bichos e as ervas daninhas prosperam, felizes, 
apesar de irremediavelmente doentes e perdidos, 
onde a cidade é mais vaga, na sua área mais devoluta. 
há casas, terrenos, ruas e passeios, abandonados, 
numa espécie de ruína progressiva e sem esperança 
para o sentido humano, que há muito se deixou de importar; 
não há viva alma, nem os mais audazes vândalos, correctores, 
sem abrigo, ou prostitutas; estou vagamente eu, e devoluto, 
que não me sei descrever com inteira justiça, a aquietar a dúvida. 



 [elipse]



quarta-feira, 28 de setembro de 2016

irradias


aveiro | portugal


entre uma mão imaginária que me acorda gentil, 
e com aplicação me conduz, transparente, ao cargo, 
e uma mão cheia de deambulações impacientes: 
aproximo-me, um pouco mais, de ti. irradias um 
princípio de luz e um cheiro a litoral que se encosta 
à minha respiração, para se juntarem aos meus 
passos apressados, que desaparecem no centro 
das ruas ou calçadas, sem lhes quebrar o silêncio. 
tudo em volta é novo e simultaneamente antigo 
e o mesmo aqui, bem dentro de mim. é início 
de outono e eu aparento ter saído dos meus olhos 
abertos, com pássaros que cantam com hálito 
de manhãs ancestrais e de lençóis lavados com sabão 
azul. e, no entanto, trago o impulso do verão, nos lábios. 


 [elipse]




terça-feira, 27 de setembro de 2016

início do dia


aveiro | portugal


recolheram-se os ventos sob o compasso irregular 
do tempo. repousam os copos. são gonçalinho 
poderá, finalmente, dormitar, ou possuir essa ilusão 
de abandono, um hiato no insucesso humano. 
a cidade é, ainda, uma claridade baça. um bote 
percorre-lhe os canais para que um homem retire 
eventuais garrafas, ou lixos vários, que a noite 
insiste em deixar cair com um sabor a tristeza, 
com o som superficial de uma imagem humana, 
como se a ria fosse o seu beco sem saída. 
no final, que é o princípio, estás tu, como um ponto 
concreto, para me recordar que as noites saltam 
de horizonte em horizonte. 


 [elipse]



segunda-feira, 26 de setembro de 2016

imaginação assombrosa




a vida tem uma imaginação assombrosa, 
como quando perdemos vinte euros 
para, mais tarde, encontrar um cêntimo. 

se quiseres, senta-te ao meu lado, em frente 
a este oceano de enganos que nos rasga 
por dentro e que fica, assim, indiferente; 
nesta areia que tem fragmentos de palavras 
tão iguais às que encontramos nos grandes 
clássicos e algumas estropiadas, outras quase 
invisíveis, que sussurram recordações não vividas; 
nesta praia onde, cada vez mais, perco o meu reflexo. 

repara como eu estou maduro, do cimo do mais alto 
número da minha idade, a construir castelos de areia 
na zona de rebentação, onde, o amor, ganha a forma 
definitiva e, se calhar, poderemos dizer que é um corpo, 
a rebentação, e que esse corpo é a carta de toda a vida. 


 [elipse]



sábado, 3 de setembro de 2016

quarto





o quarto é uma representação acessível de um certo mundo, 
com tudo o que possa conter de organização, de inflamável, 
de bélico ou de pacificador; de belo ou assustador. nele cabem 
todas as entrelinhas que podem falar das vidas que nele habitam 
com o intuito de as ocultar. é um destino de solidão, o ponto 
abstracto do sossego, para além de todas as reuniões, festas 
e batalhas que nele se tenham travado, travem ou venham a travar, 
tingidas de noite ou de dia. diz o que não se diz, com espaços 
em branco, ainda quando se pousa a cabeça na cama, por vezes, 
sobre uma almofada a servir de peito, ou quando o peito não o é. 
ou, pensado bem, não é nada. ou seja, é apenas parte da imaginação. 


 [elipse]




sexta-feira, 2 de setembro de 2016

acréscimo


vagueira, vagos | portugal


ao início, as janelas mostravam uma luz indecisa. o dia, 
que se impunha, não apetecia. o corpo não respondia, 
talvez à procura de não sentir, não ser, não estar, 
na simultaneidade da procura de um sentido, não tão 
lato ou tão remoto que se perdesse na omissão de palavras, 
num recurso estilístico ou numa linha curva fechada. 
daí parti para a invenção de um estímulo de vontade, 
um sentimento dentro dos mapas da maturidade 
na grande angular da realidade. o pensamento a pensar 
o pensamento, uma preexistência como alimento anímico. 
e foi daqui que o dia se nutriu, no decorrer de uma funda 
dúvida que pertence ao próprio dia e ao mundo cansado, 
entre carreiros laborais e riscos repletos de escolhas. 
no avesso, não há angústia. e, por fim, trago os silêncios 
clementes, e os mais cruéis, numa melodia clássica, para 
um resto de praia que o mar ainda não conseguiu engolir, 
como um pequeno conforto, um acesso febril de recarga. 


 [elipse]


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

prolongamento


aveiro | portugal


há, no ar, como que um silêncio desarrumado, um incómodo 
anímico de fim de tarde e uma surpreendente alegoria de afecto. 
nada de novo: partir, abrupto, em direcção ao horizonte; 
circundar o planeta e encontrar-me, pelas costas, num esforço 
estéril e difícil, como que numa espécie de ingenuidade 
improvável, mas previsível, num ponto da paisagem, num hiato 
do tempo. demasiada poesia. abraço a memória e retomo 
a temperatura em queda e as janelas na insípida descoberta 
do outono. as ruas e as pontes em obras concentram toda 
a angústia e o receio da cidade sobre o misterioso progresso 
ou sobre as cifras do caminho que deixamos para trás. 
e já o vento ordenou novas palavras, finas camadas de noite 
e uma salada de esperança, para colmatar alguma súbita escassez. 


 [elipse]