domingo, 29 de julho de 2018

Distracção




Não interessam as páginas que faltam ao capítulo digital do sobrevoo 
de uma página, também ela, digital; nem o seu próprio esquecimento. 
Estremece-me a forma da possibilidade de ingratidão que vejo em mim 
e alimento linhas que possam remediar os voos que não o puderam ser. 

Entretanto, observo. Vivo o tempo. Não julgo, ou julgo não o fazer. 
Creio que, o senhor, de longas barbas brancas, procura uma qualquer 
coisa nas raparigas de calções muito curtos. Será que, também eu, olho, 
assim, para as coisas da vida? Que longas, ou curtas, coisas se veem 
em mim? O que não estarei eu a ver na pele lisa e bronzeada, que muito 
parece gritar às barbas de uns e aos rostos bem escanhoados de outros? 
Ou terei eu, ou serei eu, essa expressão astuta e predatória de animal 
faminto, que vê nos outros coisas que em mim existem? Haverá alguma 
qualquer espécie de crime, numa qualquer espécie de olhar? 

Não ressuscita, nessas carnes que passam, o corpo que poderia ebulir 
no intervalo dos braços de mãos desarrumadas e ferventes, uma que escreve 
outra que segura o papel; não me resvalam, ou trepidam, nádegas ou seios 
pela mente, não por uma espécie de moralidade, ou de censura, ou de pudor. 
Fecho os olhos. Há um vazio luminoso que se enche de magia, cidade e ria. 
Sou eu, outra vez! 


[sobrevoo]



sábado, 28 de julho de 2018

Modular




Na parte detrás do tempo, vejo a fotografia do rosto abismado 
da vida, o circuito magnético do sorriso e a ciência da verdade. 
Não houve um qualquer sentimento ou outra espécie de prisão: 
não houve tempo, que não me podem oferecer. O tempo, essa 
mesma e sempre nódoa de paciência e impaciência; que requer 
sempre mais de si e de pausa; com o seu próprio doce de insónia, 
que sustenta as suas coisas, com remoinhos de imagens. E o tempo 
de agora, embora possa ser o mesmo, ou outro, ou o tempo contínuo, 
de nada vale ao tempo, de ontem, de hoje e de amanhã. O tempo voa; 
o tempo não sai do lugar; o tempo é uma forma precisa e alcançável, 
e, simultaneamente, a forma do impreciso que teimamos em procurar. 


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sexta-feira, 27 de julho de 2018

Arranjo




Eu luzo para o mundo, como o mundo sol não luz.
Não porque que eu seja uma estrela, mas, porque,
do meu escuro não quero ver o espasmo alheio
de seios intumescidos e desarrumados pelas manobras
de dedos ágeis e manhosos de comiseração.

As minhas partes podem, até, escrever a melancolia
dos silêncios, de igual modo que a dos tumultos,
ou a das sombras da idade, mas tudo isso está ligado
à corrente eléctrica de um sorriso. Apenas ingenuidade.

Talvez traga julho pela mão doce e protectora do meu olhar,
a fonte da paisagem a sair da paisagem, sem nós ou grilhões,
sem denunciar os espinhos cravados no meu íntimo oculto.
Eu, o mesmo que vos vai ouvindo; o mesmo que vos vai dizendo:
Já amei, para toda a vida, mais do que uma vez na mesma vida. 


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quinta-feira, 12 de julho de 2018

Pouso





Vamos! Vamos espreitar e ver o que há de novo por aqui: 
eu, a ria, os pássaros e os jardins, com toda a sua fauna e flora; 
o meu velho e grande amigo ulmeiro a falar de si para si. 

De resto, nada mudou na parte visível das coisas e do verão;
no aéreo, no térreo e no subterrâneo da cidade física ou imaterial; 
na potência do sal, de onde sai o sal de toda esta visão. 

O mesmo excêntrico asfalto de um excesso circulatório, 
ou a mesma poderosa superfície de cubos de pedra imortal, 
convivem sob um mesmo e eterno vento fácil e giratório. 

Pelo horizonte, estende-se o selvagem do azul, sem novidade; 
a cidade avança e passeia-se pelos mesmos turistas de sempre, 
enquanto lhe chove um mesmo poema insone de felicidade. 


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