sábado, 28 de janeiro de 2017

Noite nova


Passavam pessoas, nuvens e horas, com razões 
que lhes desconheço. Ambos se apressam 
a abandonar o inventário, com a sua própria 
música e matiz urgente. Sob a sintaxe do olhar, 
dir-se-ia que fogem. E talvez fujam destes seis 
graus tão frios, que há cinco minutos eram 
tão diferentes, tão quentes, de tão rentes 
ao pôr-do-sol e ao peito. 

Não sigo a tribo e não há tristeza no que sinto. 
Um pássaro nocturno explica-me a noite: 
É noite nova de um princípio de lua que tarda, 
abraçada a saudade do que sempre foi saudade, 
e a ria está tão saturada que não conseguiria 
diluir-me, ou disfarçar-me, no seu rosto. 

Naquele contrário que o mundo consente, 
há passeios e abraços que acabaram e um 
apontamento para endireitar mais tarde. 

Igualo-me à paisagem, como um seu contorno. 
Os versos aparentam ser habitáveis, parte de um 
sentido de tempo que chega de viva voz. 


 [massivo]



segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Visitação


Tropeçou em mim, na minha parte mais 
desacompanhada, e entrou na página 
em branco, mais gonçalinho do que são, 
à luz aflitiva e incontornável do vazio. 
Evitou, pacientemente, a página anterior, 
onde, num poema, choviam, há dias, cavacas 
doces e onde eu sorria, para contrariar 
o mundo. Aninhou-se na curva de tempo 
entre as minhas incertezas que concebem 
a tentação de suprimir problemas e a dança 
dos mancos. E aí permaneceu, imprevisível, 
por acaso, para nos questionarmos, mutuamente, 
sobre quem somos, o que somos e porque o somos, 
enquanto eu sorria, agora, para desmentir a vida. 


 [massivo]



segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

No rebordo da cidade


Em algumas noites, alguns canais da ria assemelham-se 
a profundos corredores de casas antigas, cheios de névoas 
misteriosas e intangíveis, e adquirem a dimensão do infinito. 
As madeiras, dos seus ocultos cais, rangem como os velhos 
soalhos agarrados à noite, à mercê das reticências térmicas. 
Sim, nessas horas são reticências, ou seja, um pouco depois 
do céu se repetir no espelho de água, como uma saudade 
sólida. E tudo se pode agigantar para os que assistem sós, 
ou pouco acompanhados, e à proporção dos seus próprios 
receios. A não ser que estejam envoltos ou desprevenidos 
numa qualquer saudade, porque, tudo aquele cenário é, 
não por um acaso, apenas: saudade. 



 [massivo]



domingo, 8 de janeiro de 2017

Nos braços da lua


Passar o fim-de-semana nos braços da lua, 
entre salinas abandonadas e pássaros distraídos, 
à luz incomparável do inverno muito alto, muito 
acima das minhas probabilidades. Vaguear, não 
volúvel, na deliciosa melancolia de ler o céu 
e o apego da ria à vida pejada de andaimes, 
na companhia compreensível de versos aéreos, 
nem por isso fáceis, e o coração na minha boca. 
Ah! O abraço inteligente de uma saudade, 
ilustre e conhecida, de olhar rigoroso. 



 [massivo]



sábado, 7 de janeiro de 2017

O meu infinito


Como se sentisse a resignação das árvores, 
o mar fala do caudal do frio, frio, do inverno 
e do seu incomensurável tempo, o tempo 
autêntico. Tão excessivamente real que real 
encandeia. Então, fecho os meus olhos. 
A noite nem sempre é fácil ou tão real. 
A vida segue e segue, uma vez na vida. 
Já vivo, vivo, o meu infinito no meio cheio 
de palavras. Não quero ser o que micta mais 
longe, ou o que mais, ou menos, defeca;
o meu nome não importa, muito menos a sua 
imortalidade. Se fico: fico; se vou: vou. 


 [massivo]



sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Epifania


Sentado, com se estivesse numa fotografia, ajudo 
as palavras a dobrarem-se pelo sentido, feitas de 
outras palavras, por outras palavras, sem se dizerem 
a si próprias, propriamente. O poema absorve-as e, 
através delas ou por elas, ganha a forma, o modo, 
o estado, para habitar, primeiro, a mente e, depois, um 
qualquer ponto indistinto entre a possibilidade e a imaginação. 
Convém, ao poema, servir de trampolim ou de agente 
que proporciona o salto. O seu conjunto de palavras 
funciona, assim, como força de propulsão e fica liberto 
do salto fotográfico ou abstracto, ao qual só ele próprio 
teria acesso e ele mesmo encerraria, como uma imagem 
estática e abandonada de si ou do seu próprio sono. 
Ao poema convém que as palavras saltem, também, 
mesmo que de indiferença em indiferença, já na memória, 
que não é a sua; noutros sentimentos, noutros afectos 
noutras sensações, noutras histórias, noutras ilusões. 
O poema gosta de passar e agitar as folhas, as cortinas, 
as almas; de acordar os, ou de se enroscar nos, sítios 
mais íntimos, onde se sonham as coisas que não se dizem; 
de mostrar os momentos que sabe não se encontrarem 
em si ou fora de si, já não puramente factos ou fantasias, 
mas: poesia. 


 [massivo]



quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Um novo ano


Um novo ano precisa de pulmões, aliás, precisa de todo um corpo… 
Pode não ter pés, mãos… Mas necessita de uma cabeça e de um coração. 
É-lhe necessário o silêncio. E a imaginação, porque: se não conseguir ver, 
conseguirá imaginar toda essa hipótese da realidade, a probabilidade 
das cores, a contingência dos espelhos, as múltiplas formas dos afectos… 
E, se não conseguir ouvir, conseguirá sonhar a invasão da possibilidade 
dos gemidos, a eventualidade de um beijo, a casualidade dos sorrisos… 
Sobre tudo, um novo ano, dispensa olhares, palavras ou gestos hostis. 
Depois, é só sentir-lhe o irresistível balbuciar de existências e cada um 
seguir com a sua própria, socorrendo, eventualmente, outras, no implícito 
e secreto negociar dos dias, dias a fio, onde, talvez nos possamos perder 
de novo. 


 [massivo]