quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

De um todo


O tempo, por vezes, é o contrário daquilo que aparenta ser, 
espraia-se sensível e adquire a forma imprecisa das raízes 
ávidas. Um tempo que nunca é suficiente, impossível de dizer, 
agarrado ao chão de sentidos e à praça de um momento, 
onde um punhado de si mesmo, no ar, parece um traço contínuo 
de fogo no horizonte, a equilibrar o céu e o tempo restante, 
sem, contudo, garantir o seu próprio equilíbrio ou tempo. 
Um traço que se encurta e se estreita, até se transformar 
num ponto, uma partícula de luz que se extingue, transcrita 
num pedaço de outro tempo. Adquire, assim, uma miscelânea 
de aparências e estados que se entranham em nós, fazendo-nos 
tempo do próprio tempo e uma parte integrante do seu ciclo. 
Que vida é esta, onde, entre palavras e sentimentos, habita 
uma incompensável distância e um inadiável silêncio, a tempo? 


 [massivo]



segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O tempo que passa


Sob a superficial aparência de recordação e de vontade súbita,  
espreito a parte detrás do vidro onde sempre pareço estar, 
como um reflexo de mim, por mais que me mova, por mais 
que o contorne; onde, por vezes, me vejo chegar, depois 
do poema, como que uma espécie de poeta a chegar às salinas 
e no seu espelho de água, sob a luz pertinaz do dia, como se 
caminhasse para o infinito inevitável, por detrás do vidro. 
Então, deixo passar as horas. As horas inundam-me na fronteira 
das lembranças, no mar de névoa que passa e me distrai. 
Passa o sol. Deixo-o passar, com os seus raios de palavras. 
Mas a tarde está parada quando passa o rosto do teu nome 
e o céu repete-se, como as coisas inacabadas ou as memórias. 


 [massivo]



quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

À volta

Deixemos, agora, ou por agora, as traseiras do poema: a sua forma 
de solidão. Também por ali abunda a relatividade, a subjectividade 
e, a seu modo, a decisão e a indecisão do amor e da própria vida. 
Que venham apontar-nos a esterilidade da deambulação, ignorando 
a nossa possibilidade ou qualquer outra que nos permita seguir 
como hipótese ou de ficar à volta dos mecanismos de identificação. 
Poderemos abraçar tudo aquilo que dura um suspiro, como algumas 
pessoas, algumas coisas e, até, alguns afectos, algumas sensações, 
ou o próprio poema; admirar o mar em circulação, enquanto dilui 
as diferenças de cor e o marasmo, num aparente desinteresse 
pela nossa atenção; criar, para além das palavras e dos seus sons 
e imagens ou da sua consolação, formas estáveis e, ainda assim 
questionáveis, de existência. Depois, adormecidas as palavras 
e as suas próprias contingências, poderemos espreitar, por fim, 
o nosso íntimo: a nossa retaguarda. 


 [massivo]

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Da parte posterior: ensaio


Espreitemos a parte de trás de um poema. 
Há um princípio de infinito: de horizonte, num céu nocturno 
com névoa e com alguns pontos difusos de luz; de raízes expostas 
com pequenos espelhos suspensos, onde cada um se pode ver 
de um certo ângulo e encontrar o seu ângulo morto; de várias formas 
de solidão e de vida e os seus opostos, de braços despertos e abertos; 
de uma base de sentidos e sentimentos, que podem não ser tão aparentes. 
Ou podemos encontrar um vidro transparente, onde, por mais que rodemos, 
não se lhe encontre a parte de trás. 


 [massivo]



terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Nos desertos do inverno


Faltam quatro dias para o Natal e amam-se, simplesmente, 
no azul do céu, sobre continentes e oceanos. Vivem num 
pôr-do-sol onde resistem, ou adquiriram a ilusão de resistir, 
a custo, à alegria das recordações. E sabem que o inverno 
possui desertos difíceis de transitar e que as suas distâncias 
aumentam e diminuem nesses desertos. Alcançam-se repetida 
e intimamente e compreendem tudo quando se entreolham 
nos olhos, quando sentem na carne os sonhos onde na realidade 
existem e quando os medos das palavras se recreiam na preia-mar. 
Amam-se mais do que tudo e permitem-nos observar esse amor, 
o que poderemos fazer de longe, se soubermos interpretar 
os seus corpos estelares e as sua formas prolixas de florir. 


 [massivo]



segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Contexto de inverno


O ulmeiro adormeceu, a ria parece ter subido ao céu 
e as palavras permanecem imóveis, a invejar as estrelas. 
Poderás pensar que me escondo no poema, porque se perdeu 
um fim de tarde no caudal de frio e noite; porque me falta 
o ulmeiro, a ria e a circulação das palavras. Mas, não. 
É o poema que se esconde em mim, numa espécie 
de melancolia bucólica, que não é triste ou de tristeza. 
Eu estou a ouvir os mochos a dizer o amor nocturno 
em casas abandonadas, algumas em ruínas, na parte 
ferida e resignada da cidade; a sentir o ar frio e salino 
a pulsar-me na face, por dentro, e a resposta do sangue, 
por fora dessa pele de memórias transcendentes. 
Respiro fundo, inspiro os retalhos de vida que se dispersam. 
Invoco o abraço mútuo do olhar, depois das palavras, 
e as sensações que não se disfarçam no rosto, meu amor. 


 [massivo]



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Estou a


ver a comoção do rosto, do olhar, onde se perde a conclusão 
da frase; ouvir os sons das palavras, já só vagas interjeições;
sentir o mesmo corpo, flutuante, numa espécie de vontade 
própria e sem outra, vontade, para além daquela que ócio 
produz para sua satisfação e deleite; no movimento que 
se repete para além do acto, já liberto da definição, da acção, 
das convenções, do corpo, como uma memória, um ideal 
de energia, aparentemente infinita, onde a finitude, 
ou o seu inverso, deixaram de importar: a própria paz: 
se me quiseres sentir, percorre o silêncio que nos 
medeia. Um longo, imprevisível e caprichoso oceano 
que se agiganta à medida dos medos de quem o cruza. 


 [massivo]



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Limiar de analogia


O mar, que recebe a ria, que recebe o rio, 
que recebe os ribeiros, que recebem as fontes 
ou as fontes, que correm para os ribeiros, 
que correm para o rio, que corre para a ria, 
que corre parra o mar. 
E eu, que não recebo nada e que corro 
para todo o lado, sem saber para onde, 
já não sei bem como. 


 [massivo]



segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

"X"


Da mesma forma que nem todos os que escrevem são escritores, 
nem todos os que empilham segmentos de frase, ou frases, são poetas. 
Posso, portanto, e porque quero, questionar se serei poeta. 

Os meus títulos são caricatos, risíveis e os meus versos não se escutam, 
nem na insinuação do frio, que procede não se sabe de onde. 

As palavras podem ser lugares amontoados 
que cabem num bolso da página da ria 
que é, também, cidade. 

Esquece as palavras; esquece a página, o bolso. 
Vê, dentro de ti, as coisas, as cidades, as pessoas 
distantes. Ainda vivo na tua memória? 


 [massivo]



Ontem, guardei palavras num bolso


Lembras-te? Ainda te lembras de mim? Não digas nada. 
Se te quiseres recordar, toca com os teus olhos nos versos, 
naquilo que sou e não sou das palavras que dizem e não dizem 
de mim. Se calhar, dizem e sabem o suficiente para chegares 
a mim. Mas, as palavras não dizem tudo; nem sabem tudo. 
E eu, também não sei tudo. Nem tenho todas as respostas, 
nem todas as perguntas; nem teria lugar ou desejo para todas. 

E se eu não souber quem tu és? Caberemos um no outro, 
ainda assim, num qualquer canto incerto da página? 
Talvez o bolso que nos guarda não nos perca, ou perca 
devagar. Devagar o suficiente para nos encontrarmos 
com tempo para dizer as palavras que não levam tudo, 
que não deixam tudo; que não dizem tudo o que temos 
para dizer, quando se encontram dois corpos que se amam. 

Ontem, guardei palavras num bolso. Palavras que, palavra, 
não mais encontrei. Eu perco coisas e pessoas que guardo. 
Mesmo quando as guardo dentro de mim, com mil cuidados. 


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sábado, 10 de dezembro de 2016

Aguarela com melancolia


Por vezes, sinto a tristeza como sinto o sol: a arder-me, 
na pele. Não por dentro, não irremediavelmente dentro, 
mas à superfície, à flor das terminações nervosas. 
É quando mais me dói que me peçam coroas de alegria. 

Por vezes, sinto-a, à tristeza, como uma premonição difusa, 
uma porção não concreta de conhecimento inseparável, 
inútil. Contudo, uma parte de mim, que se dilui no abraço 
de um olhar, talvez, formado na memória ou na vontade. 

Mas, não é tristeza a despedida que se guarda como 
um intervalo, ou um apontamento, embora existam 
tristezas assim, que guardamos para mais tarde remediar. 

São as palavras que te dizem: até já! Ou mesmo: até!... 
Eu não digo nada. Como poderia despedir-me de tudo 
aquilo, ou de qualquer coisa, que fica em mim? 


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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O aparte da chegada da manhã


Mesmo a maior das noites, a mais fria, a mais insone, 
a mais silenciosa, a mais escura, a mais assustadora… 
será, apenas, mais uma noite, enquanto chegar a manhã, 
como uma verdade óbvia. E, como verdade óbvia, 
talvez não passe de uma esquiva estupidez 
escrevê-lo, dizê-lo, pensá-lo. Mas faz-me sentir bem 
sabê-lo e, talvez, expressá-lo, ou imaginá-lo, o torne real. 


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Fracção


A noite de todos os pontos cardeais entra, silenciosa, pela janela da página. 
Traz a memória do teu olhar, que procura o meu, com o brilho e a ânsia 
do mar; com a súplica e a precipitação dos afectos secretos e dos lábios; 
como o fogo e o apetite térreo e solar de uma semente há muito esquecida. 
Chega pelo su-sudoeste das palavras uma agradável sensação de conforto 
e a terna recordação da chuva de folhas secas. Redesenha-se a perspectiva 
das árvores dormentes que ladeiam as ruas ou das que formam os parques, 
num outono que amadurece e que pinta sonhos de azul, dourado e névoa, 
que segue as letras de um ponto abstracto como o horizonte. 
Deixemos a cidade a brincar com as folhas, a ria agarrada ao leito e o poeta 
à luz do seu interior, a brincar com a cidade, as folhas, a ria e com ele próprio. 



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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Análise superficial


A ria mergulhou num sono profundo e as palavras não nadam sozinhas. 
O poeta não transfigura. Há horas que permanece imóvel, silencioso, 
como se estivesse acanhado, a tentar adivinhar as estrelas que estarão 
do outro lado das nuvens. E sorri, por vezes, ali, sozinho e numa expressão 
que, na realidade, não consigo descrever. Talvez esteja indiferente, 
com o alheamento necessário para suportar o peso da mobilidade 
do universo e dos pequenos retalhos da sua vida singular e latente. 
Ou talvez seja essa a sua fundamental forma de comunicar, a sua língua, 
e procura o poema que terá subido ao céu, onde as palavras aparentam 
ser mais fortes do que o cansaço e fluem com o seu mesmo interesse. 
Mas, que sei eu sobre o poeta, sobre o seu centro ou sobre a sua superfície? 
Olho para ele como se me juntasse às memórias de uma dor antiga, 
labiríntica. Contudo, leve, repleta de saídas e muito mais do que palavras. 


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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Grande plano


Parecem-me sonhos, os sonhos que aparecem. 
A ria conhece bem a minha proximidade, a minha sombra, 
a minha parte mais solitária, o meu ponto de partida. 
Procura-me um trilho no rosto, na indecisão da noite; 
uma entrada para o poema, num, ainda que breve, brilho 
de luz, que indique uma passagem, que pode ser uma saída. 

As imagens e as palavras estão cansadas, assim como eu, 
também. Tudo conflui para um silêncio condescendente. 
Talvez seja sol de outono em excesso; talvez possa fazer 
da pele as minhas palavras e imagens descansadas, ao toque 
calmo das mãos do vento, que invoca sensações distintas. 
Os sonhos procuram que os veja para prosseguirem em paz. 
A lua detém-se. Há estrelas reflectidas nos meus olhos. 


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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Onde és corpo


Há quem nos ensine a temer a morte, 
com vocábulos de um pudor que dá 
para noite, sob as asas de anjos ocultos 
que afastam barreiras deixando espaços 
para, apenas, a imaginação tentar preencher 
mais tarde. A vida, assim, adquire um estado 
encantatório, uma textura astral, um certo 
enlevo aéreo, que só uma qualquer fé 
consegue explicar e justificar. Mas a vida 
salta-nos de capítulo em capítulo e, no fio 
da trama, somos nos mesmos, ao virar da curva, 
a tomar caminhos confusos e a decidir, talvez 
inconscientemente, os mistérios onde vamos 
encalhar o corpo, toda a história e as aventuras. 
Um rumo, por vezes impreciso, que nos afasta 
da magia inicial, mas onde pudemos relativizar 
a inevitabilidade num ponto indefinido que salta 
a página para aprender a domar sentidos, 
sentimentos e a fatalidade da existência. 
Possivelmente, no momento em que nos permitimos 
errar, que é como quem diz inesperadamente: o amor. 



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domingo, 4 de dezembro de 2016

Questões sobre um poema


Como poderia salvar o poema, quando nos versos se ouvem vozes 
que nos dizem que o teu corpo não tem arestas e que o meu tem 
abismos de luz, rios de risos, manhãs de afectos que abraçam 
as prováveis noites mais frias? Quando eu mesmo me encontro 
a falar com a ria, com a cidade, com os pássaros, abraçado à maré? 
Ou quando me abandono a confortar o velho e sábio ulmeiro, 
ou a ouvir os seus sensatos conselhos, sem, claramente, saber nadar? 
Como poderia salvar o poema, quando ele mesmo nega a salvação 
e diz ter encontrado, sem compaixão e amargo, um deus à esquina? 
Quando, na sua língua, ninguém encontra um resto visível de corpo 
para entregar a um pouco de alma que tanto se pretende encontrar 
na solidão, nos silêncios, numa aturada análise à sua geometria? 
O que se pode fazer por um poema que chega à derradeira condição, 
o estado da desnecessária explicação e da dispensável resplandecência? 
Em certos momentos, tudo se funde no poeta, que é um ser humano, 
e não garante a sua própria salvação ou, sequer, a sua própria existência. 



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sábado, 3 de dezembro de 2016

Atmosférico


Quando se sente, inevitável, o temperamento das leis 
e dos fenómenos atmosféricos no corpo, onde se funde 
o lençol do gesto vago do finito, as recordações são consolações 
viáveis, como um afago ou um abraço. Podem chegar pelo fundo, 
fundo, de uma palavra, dos olhos, ou da pele. Nascem na mente, 
mas deslocam-se pela circulação sanguínea para alimentar o corpo. 
Alimentam-se, então, mutuamente e numa espécie de simbiose   
que cruza a razão, os sentidos, os sentimentos, de dentro para fora 
e de fora para dentro, em múltiplas circulações, finalmente, livres. 
Não se contam, então, as palavras, nem conta, nem se conta, o tempo.  



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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Realização repetível


Brevemente, poderei ser eu o velho que ignora a proibição 
de alimentar os pombos, como quem se alimenta de companhia, 
se ainda existirem pombos na cidade; se ainda existir um lugar 
habitável para velhos que tropeçam na solidão silenciosa; 
se o meu corpo não seguir o sentido da brevidade do sono; 
se não me afogar de vida ou de gestos imaginários. 
Ou poderei ser uma espécie de pombo sem preconceito, 
a criar esperanças; sem poder fugir da cidade, à espera de um velho. 
O amor é sempre uma solução viável, uma alternativa possível. 


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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O céu pode esperar


Deixo-me enganar pela avidez dos meus olhos, 
por eles vagueia uma multidão nocturna e ansiosa. 
Procura, a multidão, ser vista, sem devolver o olhar, 
para continuar a sonhar, num fractal de movimento. 

Olho, agora, para a palidez lunar da ria. Reflecte a fundamental 
imagem da cidade. A cidade definitiva, onde tropeço, e fecho os olhos. 
Assim, vejo o brilho dos teus [olhos] que me querem puxar para dentro de ti, 
para aí me deixarem, no lugar onde são desnecessárias todas as palavras; 
o lugar onde se esquecem todas as coisas, como as perguntas e as respostas, 
e se fica entregue a todos os sentidos físicos, metafísicos, cerebrais… 
O céu pode esperar, mas é para aí que eu vou tomar o teu corpo. 


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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Continuação: a extinção do delírio


Que outono é este, que nos entra, como inverno, pela página, 
a riscar o rebordo dos instintos e a ocupar os espaços do poema? 
Porque não lhe basta minguar a luz do seu interior, o nosso parco 
e exacto exterior, na brevidade do quotidiano reflexo dos dias? 
As suas raízes misturam-se com as nossas, num subterrâneo afecto, 
num impulso brusco que apaga o delírio, já conhecimento instituído. 
Sim, o delírio extinguiu-se, o outono é pleno, os caminhos são o infinito 
cheio de palavras, as folhas perdem-se, antes mesmo de cair, 
e acumulam-se à superfície da lembrança, onde afloras, perene. 


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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Delírio de luz: continuação


Agora, separadas das coisas, por detrás da vida, as palavras 
e as horas estão gastas e o corpo: cansado, mas transitável. 
Partilho o assombro dos silêncios afectuosos que tropeçam 
em mim e nos silêncios da ria, já laguna, unida à paisagem 
translúcida que imita a cidade envolta em mistérios de névoa. 
Floresço para ti, várias noites, numa mesma noite, num apetite 
de luz e calor que conflui nos instintos que cruzam razões 
de memórias doces, de várias texturas, e que limpam o ar 
quando, até, o tempo mais sólido se desfaz na ponta dos dedos. 
Outro tempo se faz na cabeça, no mesmo sentido do tempo 
do coração:  esquecem-se as palavras e as horas, o cansaço 
e o corpo, que atravessa as distâncias inertes de um nome. 


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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Delírio de luz


As nossas raízes tocam-se sob a exaltação da meteorologia. 
Um delírio de luz e os gigantes e os fantasmas aninham-se 
nos recantos mais pequenos e remotos da inexistência.
Perdem-se os caminhos confusos e a corrupção da noite. 
A cama emerge e abre-me para se deitar na lista de perguntas 
e, assim, atravessar a parte invisível do tempo e das palavras, 
onde o teu rosto brilha, preciso e definitivo, sem nome, sem idade. 


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domingo, 27 de novembro de 2016

A invenção do poema


Colocado o amieiro a deambular pela rua, ou de um lado 
para o outro, ou seja, a vaguear exagerado, excessivo; 
inventado o poeta, numa certa definição de norte, 
ainda com as mãos transparentes, pousado de frente 
para a vida e a aguardar o fluxo das palavras férteis: 
sorrio, com um gesto rasgado, à espera da superfície 
do poema e com o corpo preparado para o provável 
impacto. A racionalização, translúcida, incorpora, solicita, 
ao sabor da corrente, uma certa projecção pessoal. 
Ocasionalmente, quando os versos avançam, mesmo 
com as palavras mais gastas ou as mais velhas, ainda 
que sem as palavras mais devotadamente perfumadas, 
o poeta toma-nos com formas quase verosímeis de ser, 
de ver e/ou de sentir e rasga-nos espantosamente a alma, 
garantido a nossa própria e única existência, já não a sua. 


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sábado, 26 de novembro de 2016

Ponto de partida


Por vezes, fico por aí, algum tempo, a inundar a cidade, 
abraçado por um fundo de ria, envolto por um segredo 
de vento que, depois, me agarra pela mão e me puxa 
até desaparecermos num princípio de noite e de rua, 
que existem em poemas que guardam a tua imagem. 
Então, a viagem é poética, a noite decifra os sentidos, 
apaga, piedosamente, as luzes e eu enrosco-me à vida, 
tão perto de me encontrar. 


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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

No avesso do outono


A cidade, transfigurada, fala-nos com a voz transtornada, 
entregue ao espanto do frio e da chuva, como quem teme 
o ermo entregue aos seus muros com recados obscenos. 

O dia não sustentou a abertura do céu matinal 
de um oriente que alimentava o deleite de gaivotas 
que não anteviam a fragilidade da luz, vindas da noite, 
àquela hora em que não temem qualquer criatura. 
Prosperaram os caudais de promessas do poente 
que declaravam chuva desvelada ao solo e nuvens 
atentas ao brilho do sol, que preencheram o dia. 

Desço ao rés-do-chão dos sentidos. Tudo isto me deixa 
muito só, muito entregue a mim; não necessariamente 
triste; não necessariamente entregue ao torpor ou à ruína; 
não necessariamente a guardar a minha distância ou as portas 
que fechei, muito menos a lamentá-las onde a vida se encontra 
confinada, mas mais exacta. Instiga-me a procura das palavras 
que me ajudam a encontrar a vivacidade da geometria 
de um ângulo quase morto ou, porventura, morto por extenso. 
O meu tremulo coração bate e floresce-me a polpa dos dedos, 
que procuram uma qualquer coisa insegura, 
como uma região do teu ser. 


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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A tua beleza


Um sonho, por vezes, um acaso 
ou uma semente que germina: 
a aventura, já um desafio, que te chama 
sem explicações, que aceitas, que persegues 
e pelo qual lutas e ao qual dás corpo 
do teu próprio corpo. Um corpo já só um ideal 
de imagem, uma forma aparente de beleza 
que te aproxima do vazio, ao qual vendes 
a tua identidade, e onde te vais diluindo 
numa moeda de troca, com a qual compras 
a ilusão de viver ou a vida que alguém ditou. 
O mundo, que não te vê, cabe-te na palma 
da mão. Fecha-a generosa e demoradamente, 
enquanto o teu profundo interior brilha, 
acima de todas as coisas: o coração. 


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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Fragmento de tempo


Acomoda-se uma estranha premonição. 
O tempo procura-me um conforto incerto, 
como quem procura um tesouro, uma dádiva. 
E eu perco, sempre, a hora, com a mesma vocação, 
que é abandonar a tribo, no meu trivial de tempo: 
a duração, a oportunidade, o clima, o movimento, 
a divisão do compasso… arrumo o azul do céu. 
Ah! Ria, o nosso amor sou eu e pouco mais. 
E estamos aqui, inertes, deitados no acaso 
de uma cidade, por vezes, tão longe de nós, 
num, ainda, fantástico escombro de mundo, 
entre mais de sete mil milhões de habitantes 
que são mais de sete mil milhões de definições 
para um mesmo deus; para um sempre diferente 
amor, composto por várias peças e vários destinos. 
Uma qualquer coisa mais de sete mil milhões 
de vezes desigual, à procura de uma doutrina, 
já só vagamente preceito, como uma forma 
de prosseguir, a tempo, uma incerta emoção. 
Procuro, no rebordo da lua, a nudez inteligível, 
o reflexo da salvação da terra arável dos sentidos. 


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terça-feira, 15 de novembro de 2016

Quebrável


Minha frágil ria, no meu sussurro simples, 
abro-te, modestamente, o meu coração 
e se, por momentos, semicerro os olhos, 
é para te sentir dentro da minha solidão 
fantástica, piedosa e de palavras miseráveis, 
com alma. Defeitos de ternura e afecto, 
nas distâncias dos meus olhos brandos. 

Olhamos em direcções diferentes, 
quando não transfiguro a paisagem 
e sou, eu mesmo, o silêncio da imagem 
que reflectes; este íntimo afastamento 
que ondula em ti, misterioso e denso; 
a forma geométrica do líquido horizonte 
que se desfaz no mar, num êxtase insone. 


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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Superlua


Apercebo-me do meu sorriso roto. 
Os beijos e as mãos perderam a relação 
lógica no canal onde os pés não têm chão 
e onde estão os moliceiros de proa feliz, 
que guardam a saudade dentro dos seus 
castelos, ao som da aragem que alimenta 
as marolas onde um sonho tem um ponto 
final e onde cresce uma vaga harmonia. 

Mas, o céu enche-se de lua, que vem como 
sol e que fecunda a paisagem tranquila. 
O seu clarão sensível possui um sentimento 
misterioso e harmónico e uma emoção 
sobrenatural, um ideal, quase matéria, 
onde os seres vivos ocupam uma nova vida. 

O mundo invisível recebe os fragmentos 
de esperança, vindos dos fluídos da lua 
e de poesias abandonadas, agora cheias 
de luz e graça. E o que nele é vago e escuro, 
ganha a forma do amanhã, como sombras 
projectadas sobre os nossos sentidos. 


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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Pequena circunstância


Gradualmente, as janelas enchem-se de luz. 
O frio devolve as pessoas às residências, 
pretende ficar sozinho, a oscilar pelas ruas. 
Cruzo o seu caudal de memórias sem nome, 
como se atravessasse, sem dor, à descoberta, 
a secção dos congelados do supermercado. 
Talvez encontre algum sustento; algum rasgo 
alimentar de infinito sedento de companhia 
cerebral; uma réstia de esperança desconhecida. 
Há um sussurro atendido pela meditação 
à entrada do corpo entregue ao espanto. 
Este ainda não é o frio que me há-de deter. 


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domingo, 6 de novembro de 2016

Cidade: introdução de regresso


Por vezes, ao domingo, também há um regresso à cidade. 
Acredito que cada regresso tem uma ordem e emoção distinta, 
embora fruto de uma mesma estrada e de uma mesma figura. 
A cidade aparenta indiferença. Aquela indiferença que nos investiga, 
até, o íntimo das entranhas, e que quem ama conhece e entende, 
sabendo que essa indiferença é um jogo de saudade e que a cidade 
não garante os seus próprios sentimentos e a sua imagem inteligível. 


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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

E não fosse a chuva


Um poeta, sentado, como habitualmente, no canto 
mais extremo da taberna, numa névoa sépia, 
que talvez seja a sua, bebe café e escreve o poema, 
rodeado pelos personagens habituais, que aparentam 
ter nascido na própria névoa que cresceu no estabelecimento 
e ao longo dos seus muitos anos de existência. 
Por vezes, entreolham-se, através, não só dessa névoa, 
mas, também, de uma neblina que aparenta habitar 
nos seus próprios olhos e que os torna vagamente 
reconhecíveis. Assim, o poeta difuso, escreve o poema 
sobre o horizonte do lado do mar e que lhe terá afiançado 
que a chuva não tardaria. Ao que apensa um pássaro 
numa árvore de cidade pequena e o amor sem mapa, 
repleto de distâncias, de cidades, de ruas e o seu mistério 
cheio de frio e quotidiano. O futuro segreda-lhe que alguém, 
ao ler, lhe apontará um presumível distúrbio mental 
e que, a chover, será uma chuva molha-tolos: o horizonte 
não fala. Mas o futuro também não! E todos estarão, 
seguramente, certos e com as suas razões. Contudo, 
sabe-se que a chuva, quando pode, molha qualquer um. 


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Antes do jantar


O gato atravessa a relva do parque à hora de ponta 
do recreio dos cães. Atravessa com sete inseguranças 
e sete cuidados; com sete firmezas e sete audácias, 
nas suas sete hipotéticas vidas. Quase que rasteja, 
com sete olhos nos cães, e sete vezes hesita e outras 
tantas se aventura. Todo ele se torna hirto e agilidade. 
O gato sabe. Os cães sabem e os seus donos temem 
saber. Mas, hoje, o gato tem uma vida para contar 
e poderiam ter-lhe voado as sete vidas incertas. 
O amor, por vezes, assemelha-se ao gato ou aos cães 
deste fim de tarde. Não sei quantas vidas tem o meu 
amor, o teu amor; se, no outono, o meu corpo é 
o encerramento do céu; se existe um momento ou 
um número exacto para a nossa presumível salvação. 


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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Errático


O cemitério florido, levemente oxidado e cheio de formas 
de vida aparente, ainda povoa os meus pensamentos, 
como se a vida passasse pelo buraco de uma agulha. Agora, 
sou parte de parte da ria pendente numa ténue névoa, 
levemente acinzentada. Parece que a cidade se afastou, 
como um estremo da noite. Não pretendo conceber 
uma igualdade de circunstâncias absoluta, apenas o seu 
arrepio, e reparo que a humidade conferiu brilho à calçada, 
brilho que se estende aos bancos desocupados e à relva 
onde brincam cães absortos, de pessoas ausentes 
que se assemelham a sombras, apenas sombras. 
Não consigo assegurar as suas dimensões, formas 
e distâncias, e caminho lentamente, pela rua inevitável 
que me conduz à Beira-mar, onde chegar é uma questão 
de futuro próximo e de contornos mais ou menos serenos. 
Por momentos, a névoa aparenta crescer dos cães 
e dos seus donos, como uma espécie de cansaço febril 
a libertar-se da prisão dos corpos e a diluir-se no ar: 
a representação física do meu próprio cansaço e da sua 
ilusão, por vezes insinuante, em mim. Só para mim. 
Detenho-me na curva de um sorriso incompreensível, 
uma resposta simpática e solidária do meu corpo, 
apenas corpo, a tropeçar no corpo de um sonho. 


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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Massivo


Brotam, essencialmente, à noite, junto aos bebedouros 
dentro de portas. Florescem praticamente todas as noites 
e o desflorescimento ocorre com a chegada da manhã. 
Por vezes, titubeiam insones e lamuriosos; vacilam factos 
e palavras; gemem uma angústia fermentada e convulsa 
de afectos demolidos, que os distancia da esperança 
ou lhes confere uma esperança ébria e comprometida. 
Mas, nem sempre é assim, no relativo etílico reflectido. 
Conheço esses caminhos do amor, para além do olhar 
químico, filosófico ou emotivo, mas não vou por aí. 
Rumo noutro sentido, procuro outra vertente do céu; 
a companhia de uma estrela; o murmúrio líquido 
e nocturno da lua, da ria, das árvores, das ervas, 
que se transforma numa frágil, mas terna, melodia. 
As palavras orbitam e rodopiam em torno deste som. 
Tenho a cidade cravada nas costas. Talvez nunca perca 
o teu rosto absoluto e concreto, a sua imagem, na distância 
das paisagens da memória. Mas, quem és tu? 


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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Dedução


Os dias encurtaram, nitidamente, com o crescendo 
do outono. À excepção das gaivotas e das pombas, 
que em alguns momentos aparentaram possuir toda 
a serenidade e todo o tempo do mundo, as restantes 
aves deambularam de um lado para o outro como se 
tivessem algum dever a cumprir, um afazer permanente 
e inadiável, uma urgência constante, enquanto a luz 
do dia o permitiu. Pouco mais me resta do dia. À noite, 
o silêncio junta-se a todas as aves diurnas e estas são 
dissolvidas pela escuridão. As nuvens deixam, apenas, 
uma ideia de céu e, quando as janelas se iluminam, 
percepcionam-se uns vagos vultos ou a projecção 
vazia dos seus movimentos… A vida é o movimento 
e é tudo o que com ele fazemos e como o multiplicamos. 
Mas, há movimentos sem vida e outros que conduzem 
a morte. Também o movimento é relativo e ilusório. 
Sorrio com estas inusitadas deduções e não continuo. 
O ar entretém-se comigo, o que afasta a sensação 
de ser um irremediável poema, a viver numa gaveta. 


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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sentido único


Os lábios comprimem-se, como se pretendessem ajudar a suportar 
as imagens pálidas e vagarosas que parecem chegar em suores frios. 
Poderia dizer que a minha razão e o meu coração estão noutro lugar. 
Afasto-me das almas mais problemáticas, aquelas que se cegam e cegam. 
Que cidade é esta, onde vogam rostos fechados e imperturbáveis? 
Que parte de mim eu sou neste canto remoto e frio do meu ser? 
Hoje perdi as árvores, perdi a ria, perdi a vontade e o meu nome. 
E não é sobre mim, mas sobre coisas que eu, de alguma forma, experienciei. 
A luz vermelha, do semáforo, aguarda que eu passe. Aperto-a ao peito. 


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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Periférico


Agora, a periferia. Os salgueiros, que emolduram e zurzem 
o Vouga, guardam as suas próprias formas entre as raízes 
do ar. Por vezes, falam de salgueiros mais distantes 
e carpidores, salgueiros que os próprios salgueiros evitam. 
Encaram as paisagens húmidas com sorrisos e desconfiam 
imensamente de quase tudo o que se relacione com a cidade. 
Sabem que, à noite, as coisas se agigantam, carregadas 
de tons escuros, enquanto a linha do horizonte tende 
a turvar até à sua inexistência ao simples olhar nocturno. 
Por vezes, desperta em mim uma onda de imensa saudade 
e procuro o rumor dos salgueirais. Embora só, aqui nunca 
estou sozinho. Aqui as almas são descomplicadas e, apesar 
da minha reconversão à cidade, do meu rosto adormecido 
de cidade, absorvem-me, que é a sua forma de partilhar 
e comunicar. Em momentos de um bom acaso, as águas 
imitam toda esta paz e alentam os seus jacintos, que não 
dormem. 


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terça-feira, 25 de outubro de 2016

Passagem urbana


Em Aveiro, o outono colhe quase todos os turistas 
e faz despontar estudantes por quase toda a cidade. 
As casas transformam-se em pequenas arribas da Beira-mar, 
a ria ganha um novo hálito e o seu imprevisível caudal 
de tempo é relativo. É no outono que a relatividade 
é inteiramente exequível; o silêncio ganha uma forma 
distinta e absoluta, e pode dizer-se que é, por momentos, 
audível. Os dias adquirem a condição de magia que a noite 
intensifica e condensa. E, por vezes, embora chova, eu sou 
só eu, a espreitar a parte detrás do horizonte; a procurar 
entender a parte invisível do amor, da curva do sorriso, 
do brilho do olhar, de um suspiro, da saudade… E perco 
a noite por entre os dedos, por onde tu não vais, nem 
madrugas; nos poemas que perdem as folhas e o outono; 
consumido pela avidez da luz e da languidez do corpo imaginário. 


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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Andante


Os pássaros adoram o ulmeiro da avenida. 
Brincam, felizes, nos seus ramos alegres. 
Ele, por vezes, faz uma brevíssima pausa 
na sua caminhada em direcção à ria, 
para explicar, às suas folhas, a estrutura 
funcional de uma célula de afecto. 
Não sei porquê, mas, as suas folhas, 
teimam em cair, mesmo depois 
de o entender. Por vezes, mesmo antes 
do outono, quando a cidade se perde 
em mim, à procura dos meus ramos, 
do aconchego do meu troco e da firmeza 
das minhas raízes. Nesses momentos, 
atravessas os meus poemas, onde cai 
uma chuva vulnerada, e os nossos 
ramos tocam-se, nos soluços, quase 
corações, e quase entendemos todas 
as solidões. Depois, suspiro e já não 
está ninguém, apenas um mundo de mil 
partes, o hálito do despertar e a parte 
detrás de um sorriso luminoso: cordialidade. 


 [massivo]



domingo, 23 de outubro de 2016

Tempo com paisagem


O ulmeiro fala sozinho e adormece no inverno, mas 
irradia uma natural e peculiar imagem de sapiência; 
caminha na avenida, no extremo mais próximo da ria 
e ao seu encontro, cadente, circunspecto, sem garantias. 
A ria tem sussurrado mais do que o habitual. 
Aguarda pelos versos que a rasgam por dentro 
ou pelo coice de um poema, numa sofreguidão genuína, 
com a superfície espessa de um movimento congelado. 
Por vezes, desamarra-se do cais, sobe à praça e vagueia 
pelo seu movimento ondulatório, à procura do ulmeiro. 
Eu sei que saio à noite e que chego ainda mais à noite; 
que a noite, por vezes, é mais longa e com pontas 
desiguais; que os lençóis respiram a saudade e abraçam 
o corpo no escuro, alheios à ria, ao ulmeiro e a cidade; 
que, de qualquer forma, no relativo da ria e do ulmeiro, 
estamos presentes como lençóis abraçados ao corpo 
do vento, ou como desígnios que aguardam a mudança 
do sinal luminoso do seu trânsito condicionado: o amor.


 [massivo]



quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Aprendizagem


Uma flauta chama por mim, ao longe. Tão longe, 
a melodia e a cena pungente dos abraços e dos beijos. 
Os morcegos estudam piruetas e segredam-me 
que é tarde. É tarde, a noite conquistou o seu espaço, 
o seu tempo, a sua imagem de noite; avolumou as sombras, 
que, com a sua natural avidez, tragam a cidade, que é, 
agora, apenas, um ideal de cidade, onde sou um ideal de mim. 
O ar frio, que me puxa, cheira a ar queimado e as raízes 
iluminam-se, confirmando a minha suspeita: não é o mundo, 
sou eu que ando ao contrário e piso um céu que, se calhar, não existe. 


 [massivo]



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

À superfície


À superfície do rosto, a triste sensação 
de estar perdido na cidade que perde 
as folhas num tédio vulnerado, sob um céu 
que derrama azuis líquidos, cheios de alegria 
e expectativa. A luz, solta, ignora algumas sombras, 
numa configuração tranquila de liberdade, 
e beija a ria, onde ela se abre desimpedida 
e exala o seu cheiro húmido a sal e a saudade. 

Os olhos não descansam, temporariamente 
ausentes, à procura não sei bem de quê. 
Talvez um quê perdido no subconsciente 
emaranhado na linha invisível que une as olaias 
descontraídas aos lódãos despreocupados, 
numa revolucionária resolução de amor. 

Deixo-me ficar, ao frio, contigo dentro de mim, 
num pacato modo de ausência que traz, à superfície 
transparente do rosto, os sinais que levam as pombas 
a pensar que me abandonei irremediavelmente; 
que fui derrotado; que me diluí no alheamento; 
que parti desafiando a loucura do tempo e do espaço. 

Encaro o medo de amar, que surge 
não sei de onde, e afasto os seus dedos, 
feitos não sei de quê, para passar pelo acervo 
solto de frases que, não sei porquê, escondem 
a pilha solta de frases que formam a ponte: 
a agradável inquietação de meditar. 

Olho a vida de frente e vejo-a em toda a parte. 
Sorrio, à superfície da actividade mental. 
Cá está a poesia que te sussurro ao ouvido, 
tão solicita e tão subtil! 
A cidade quase troca os seus personagens. 


[massivo]



segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Presença



Hoje, as gaivotas falam de céus desconhecidos de um só dia 
e cantam o ideal de beijos que cantaram nos meus lábios; 
abraçam o ar abrindo as asas e disfarçam o afecto simulando 
sacudir as gotas de água das suas penas, como se estas penas 
fossem uma fantástica representação da saudade dos meus olhos. 
Um gato, completamente imaginário, sonha com pássaros mais pequenos 
e aparenta sorrir, da sua janela oblíqua, com um desejo fascinante. 
O gato acompanha as gaivotas com o olhar, mas permanece imóvel, 
como se toda a mobilidade pudesse dilacerar a existência irreal 
das gaivotas, sob este céu que alberga inúmeras histórias de amor 
e que chama por nós e para um quarto anónimo onde poderíamos 
diluir a nossa incontida presença, na tensão de um elaborado acto 
de amor, a olho nu, entrelaçados como as trepadeiras da nossa ausência. 
Inventá-lo-ia de novo, com a sensibilidade da ponta dos dedos, 
no frenesi da tua língua, no precipício da tua pele em incandescência 
e tumulto; como um princípio de uma hora longa e insuficiente. 


 [massivo]



quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Outono, a meia voz



A minha imaginação insatisfeita. O musgo da cidade, junto ao conflito 
de águas no deambular da praia-mar da ria, dorme. E as nuvens 
ocultam o caminho da vaga astronomia de um sentimento. 
Não sei se nos cairão as folhas quando o tempo se tornar mais 
intransitável, ou na curva dos dias de vagos ou hesitantes clarões. 
Reconheço-te pelo som indelével da tua voz e da tua respiração; 
pela tua imagem disseminada na pele e no peito da paisagem, 
no âmago das coisas e no fundo das cores que fingem os teus olhos. 
Sinto o fio tenso do vazio de uma moldura absorta a dançar, desabitada. 
Mas, agora, importa a paz da luz na circulação sanguínea, vórtice 
que deforma o espaço e o tempo, e tudo se torna belo, pleno, infinito:
poesia. 


 [massivo]



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Permanecer



Eu não quero falar do tempo ou do estado do tempo; 
nem das transparências do corpo a imergir na névoa densa; 
nem da realidade que tropeça no sonho ou o sonho nela. 
Uma aurora sem luz excessiva e os meus olhos têm asas. 
Na minha cabeça crescem árvores de raízes enluaradas 
e das suas feridas cicatrizadas soam rumores de aniversário, 
ou é, apenas, o som de um ataúde que atravessa os versos, 
num espirituoso sobressalto a que chamamos corpo. 
Vem, junta-te a mim, aos sons da ria e aos seus cheiros 
húmidos. Abrirei o meu peito para te conter, para te auxiliar 
na travessia do invisível, uma espécie de solidão do olhar 
e que desaparece, espontaneamente, com o nascer do dia. 


 [massivo]



terça-feira, 11 de outubro de 2016

Regresso a Outubro



Há, claramente, momentos de silêncio; de outro tempo; 
de manhãs que acordam prometidas ao acaso, aos pássaros, 
as raízes emaranhadas; independentemente do tempo. 
No entanto, tudo é tão relativo e as próprias palavras 
nem sempre conseguem assegurar a sua própria forma 
ou a sua consistência, surpreendidas no cais, pelo amolador. 

Regresso a Outubro, às folhas das árvores, por entre folhas 
de cadernos e blocos de onde nunca saí. Regresso ao vento, 
ao frio; à congeminação da alegria de te voltar a ver; à tua boca; 
à casa que chama por nós, com a promessa da chama da lareira; 
à ponta dos dedos; aos olhos; à imaginação; à fragilidade do céu, 
de onde as nuvens hão-de cair para a banheira de mais um sonho. 


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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Criação



Tudo o que escrevo é intencional. Bom, quase tudo, 
e a intencionalidade não se transforma em biografia. 
Por vezes, num estado febril, na ebulição da escrita, 
num rasurar, excluir, refazer, apressar… aparece um erro. 
E o erro pode ter vários tamanhos e ser mais ou menos 
fatal. Caem-me algumas penas e, embora fique envergonhado, 
não escondo o bico debaixo de uma qualquer asa de ocasião. 
Para além disso, tudo é intencional, mesmo os títulos mais parvos, 
os restos de sentimentos, os rostos sem nome, as imagens, 
a estridência da insanidade… o gosto, discutível… o amor… Mas, 
é claro que não inventei, propriamente, o amor, embora tenha criado 
um poema que o inventou. Sei, agora, que já outros o inventaram, 
rigorosamente, com palavras; com actos mais interessantes; 
com outros engastes. E aquele, embora meu, embora seja, 
para além da descoberta e do encontro, não é uma invenção. 


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domingo, 9 de outubro de 2016

Chamo-te



Um último clarão de poente, uma estreita remanescência de luz, 
o ponto onde a noite principia o trajecto que já me vela. Uma 
aparente viagem nostálgica, pontuada por um suspiro definitivo, 
que me revela de várias formas e, também, as múltiplas raízes. 
A areia sonha longamente este sentimento. A água espraia-se 
devagar, sensível, solidária, para não perturbar o equilíbrio do céu. 
A noite encolhe os ombros e o vento prossegue nu por um funil 
de silêncio. O sorriso atravessa os versos, actualiza as palavras, 
define ambos na sua curva impossível de dizer, como um desenho 
de afectos claros, de muitas ramificações, a linha que nos une. 
Chamo-te, em sussurro, deste lado do vento, por uma abertura 
intransitável do céu, que o noitibó evitou cuidadosamente. 


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sábado, 8 de outubro de 2016

Inventei o amor



Inventei o amor. Um sentimento sem a possessão de outrem, 
mas com zelo, sem receio: o ciúme. Inventei-o simples, simplesmente, 
embora se complique explicá-lo, como se me perdesse nas grandes 
curvas do ar e me fosse impossível voar conduzindo as palavras 
por entre os galhos das árvores. Inventei-o e dele faz parte, sempre, 
uma grande afeição e, por legítima preguiça e genuína e pura insensatez, 
continuei a designá-lo pelo mesmo nome, quando, por vezes, 
lhe encontro a atracção. Inventei-o e sofro a alegria da carne, 
tão consentida, tão isenta de crueldade, tão sem culpa, tão intensa, 
quando é o rastilho do desejo. Inventei o amor: 


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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Poente com abraços



Hoje não sou lamecha. Afasto-me dos meus dedos, 
que são, de forma cerimonial e fortuitamente, os teus. 
Não há tempo de mais, os pássaros desapareceram 
na tarde indistinta, que se encaminhou para o seu termo, 

carregada de circunstâncias e de razões misteriosas, 
como ondas, que rivalizam com as de um mar mais agreste. 
As árvores, confusas, tão cansadas de andar, já não sabem 
ao certo se procuram a justiça do amor, o amor com justiça, 

ou o amor na justiça. Algumas, por fim, limitam-se a deixar 
cair as folhas, para, depois, as percorrerem, contemplativas, 
como se procurassem uma qualquer explicação ou esperança. 

Eu sorrio estupidamente, ou seja, sorrio em paz, sozinho, 
embrulhado em recordações, algumas que nem existem, 
e atravesso a sorte de um bonito poente com abraços. 


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quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Plantas



– Não prometo nada! – E dito isto, a árvore prosseguiu o seu caminho, 
fincando as raízes na terra, na sua imobilidade relativa, abstracta 
e garbosa. Estendendo os ramos na densidade curvilínea do ar, 
à procura da aurora do outro lado do mundo. As árvores também 
se amam, assim como todos os seres vivos do reino vegetal. Eles 
também inventaram o amor, em todas as suas formas e à sua medida. 
Faz-te aqui e em mim, seremos duas árvores de amor perene 
nestas horas caducas que voam com o vento, ou para termos um 
amor caduco em horas perenes, mas sem nos prometermos nada. 


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