segunda-feira, 26 de junho de 2017

Reminiscência



Não sei onde estás. 
Como que te senti de alguma forma, com qualquer coisa; 
com a clarividência de uma noite de insónia e a extravagância 
da aragem. Num gesto, num gosto, num cheiro, doces.
Chegas-me como um novo conceito de realidade, 
num reflexo conhecido, e tocas-me para reaparecer 
nas sombras da memória, que de mim se alimenta; 
que em mim se demora; que não consegue abrir os olhos 
à chegada da luz; que não quer reconstituir a história quando 
esta se torna inevitável, mais nítida: uma imagem recuperável. 

É sabido que, em certas horas, tudo se confunde e amalgama 
em coisas banais, como coisas banais, para preencher os espaços 
vazios entre as palavras, assim como entre as linhas, da vida 
que nos esqueceu e que quase só murmuramos para dentro, 
por dentro, no milímetro quadrado da precária intimidade. 


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sexta-feira, 23 de junho de 2017

Progressivamente denso



Agora, o mar passeia-se pela cidade: 
a minha cidade, um certo odor a mar. 
As palavras chegam cruas e entram-me 
pelos olhos fechados, numa tarde 
que também se vai fechando, 
com prenúncios irremediáveis 
de que virá ainda mais vento 
pelo meio do amor que tenho 
pelos gatos e pelos cães abandonados, 
para me açoitar o sono, 
como os fustiga, a eles, cães e gatos, 
e ao fio da sua paz. 


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sexta-feira, 2 de junho de 2017

Um outro poema sobre fantasmas



Quando os fantasmas não têm a certeza da nossa existência, 
ganhamos a transparência fundamental e a consistência da névoa 
a pairar num obscuro e impensável despropósito de vida. E, 
nesses instantes, podemos vê-los plasmados numa solidez de dúvida; 
eriçados, em torrente, até à mais profunda convicção de si próprios; 
imbuídos em suor e vóltios que gemem uma melodia acidental; 
mesmo à nossa frente e numa qualquer superfície que, mais ou menos, 
espelhe, para que, a nossa imagem, atravesse a nossa memória. 


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quinta-feira, 1 de junho de 2017

Intermináveis



Há poemas que não tem fim, que não se deixam concluir, 
e que partem, sem partir, ainda com as raízes dentro de nós;
que nos deixam a olhar para o horizonte, como quem procura 
o amor ausente, um qualquer horizonte, mesmo que um horizonte 
confinado ao tecto onde despontam os bolores da habitação; 
que nos tocam o transcendente do odor e dos sons das imagens 
que se debatem para adquirir os contornos que deixaram de ser 
concretos e que vivem no limiar da realidade e dos sentidos; 
que adquirem a forma de uma melodia familiar e antiga, difusa, 
mas como que intrínseca à exactidão e à certeza da existência. 
São, sobretudo, os mais ruidosos e reproduzem-se no nosso silêncio. 


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