quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Aterragem




Eu quero falar-te sobre as coisas mais simples que me aconteceram, 
entretanto: deixei cair o outono, um pedaço de outono, na primavera, 
no regaço da primavera, e não sei se é justo que, agora, venham separá-los, 
neste tempo em que se começam a entender, embora tudo tenha a simples 
e extravagante aparência de estar infinita e repetidamente baralhado. 

Uma senhora quer comer-me as flores e, por outro lado, estou dentro 
desta ideia do tempo dentro do tempo, onde sopra um vento dentro 
do vento, e que se move, agora, à mesma velocidade do tempo 
que ocupa. Por isso, com certeza, não será conveniente que eu apareça 
com um tempo, que, embora tendo-o criado, já não me pertence. 


 [sobrevoo]



quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Identidade duvidosa




Que estranho mundo, de coisas indizíveis. 
Andei à procura da inteligência das estrelas, 
sem conseguir alcançar uma coisa ou outra, 
e agora encontro as andorinhas em alvoroço. 
Desenham, no ar, o prenúncio ruidoso e veloz 
da sua eminente longa viagem, com a imagem 
gasosa da leveza do cetim, negro e branco, 
e o espelho chama por mim, desequilibrando 
a surpresa, com os nervos à flor do vidro sensível. 
O dia interrompe-se e as promessas dos cartazes 
ficam, simples e irremediavelmente, suspensas, 
como os sorrisos atónitos dos rostos estampados: 
Não valem nada e não são por, ou de, ninguém.


 [sobrevoo]



quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Ao balcão





Esta é a consciência de que todos somos personagens 
de uma vaga da história, em dias mais ou menos fáceis. 
Este é o lugar que mais os aproxima dos livros, de que 
não necessitam (os personagens que transmutam as suas 
fisionomias, numa luta ininterrupta pela sua sobrevivência 
ébria, e que, na realidade, contém todas as elementares 
instruções); que mais aproxima a nossa mútua e precária 
existência e é uma espécie de taberna. Do outro lado de uma 
rua muito estreita, ainda resiste uma casa onde residem livros 
resilientes e que não estão presos a ninguém (como eles), 
apenas a uma instabilidade (como a nossa, a de todos nós), 
como que uma biblioteca. Mas creio que, reflectidamente, 
a proximidade não se fica por aqui e é aqui que, por vezes, 
venho tomar um café expresso, incomparavelmente amargo. 
Como se, também eu, esperasse encontrar um fundo de razão 
num fundo de chávena com borras; onde sou eu o personagem 
estranho, miserável e cheio de resíduos, por quem os deuses penam 
às janelas, e que leva uma bofetada da vida, sem sequer a ver 
passar, vida que só aos personagens de outros fundos pertence. 
Aqui, ninguém quer ajuda e a ajuda fica, obedientemente, à porta. 
Este é o sorriso de quem sabe que é igual e que pode levar consigo 
muita da miséria, que é a nossa alegria de ter coisas que não deixam 
voar. E depois voo, tão rápido quanto a minha imaginação o permite. 


 [sobrevoo]
 [04 de setembro de 2017]