Um dia estava só e tão abarrotado de gente em danças,
Que não ambicionava, nem cobiçava, mais mudanças.
Estava ferido, cansado, sem expectativas, sem fado.
Não queria beijar, amar, nem, simplesmente, ser desejado.
E, sem saber porque actos, circunstâncias ou sensações,
Ofereci-te, sem reserva, as minhas despojadas lembranças
E o amor sincero, despudorado, livre e sem pretensões,
Que não fossem as de amar puramente e sem alucinações.
Um amor sem mordaças, sem cativeiro, sem cobranças.
Descido até às invisíveis ordens e venturas da benquerença,
Normal e em tudo semelhante aos comuns e meus iguais,
Elevado até ao desprendimento de uma qualquer crença.
Dediquei-te os meus dias, as minhas carícias e alegrias.
Conheces os meus temores, os odores e as fobias.
Sabes tudo sobre os meus olhos tristes e mareados,
E sobre os meus assombros em momentos reservados.
Abri o meu peito e não existiu qualquer assunto proibido,
Dei-te amparo, aconchego, sonhos, agrados e poesias.
Transformei em experimentado, o mundo desconhecido
E em sorrisos os momentos em que me senti aborrecido.
A partilha foi franca entre realidades, dúvidas e fantasias.
Brotava a razão, sem causa, numa autêntica felicidade,
Despida de qualquer exactidão de conclusões, ou atilhos;
Coberta com o manto espesso da cegueira da intimidade.
Não te exigi, nem pedi, favores, mordomias ou benefícios,
Nem qualquer acto transcendente, ilícito ou artifícios.
Parecias aceitar, quando não aceitaste, o meu primeiro fruto,
Que escarneces num acto contínuo, calculado e resoluto.
Usas as minhas fraquezas, por mim, humildemente enunciadas,
Como tormentos, flagelos e castigos, em sacrifícios.
Gastas as acusações, já acabas, vãs e não materializadas,
Em arremessos revelados de tormentas e saraivadas.
Lanças o desdém e o escárnio, ilimitado, aos meus ofícios.
Laivos de insanidade inquirem a astúcia do conhecimento,
Nos rios do rústico engenho da maldade e do mando.
Só a barragem trava e debilita o seu afanado desenvolvimento.
Não sei porque me cansei de ser esquecido e ignorado,
Porque sou sempre o que está errado e despropositado.
Porque permaneci, constantemente, um estranho, para ti?
Porque me abraçaste e aceitaste, se nunca o mereci?
Estranho-me na realidade que não vejo e de que desconfio.
Desconheço-me na revolta e neste sentimento amargurado,
Que me permitem o descontrolo, a raiva e o desvario.
Não quero esta desculpa para o delírio que propicio
E não quero alimentar a disputa de um discurso desramado.
No calor gélido de um conflito cego, vil e improdutivo,
De uma hora aziaga, perpétua, ainda que fugaz e efémera,
Perece a inocência e solta-se o ordinário substantivo.
Permaneceste fria e distante e eu, um desconhecido vulgar,
Fora do propósito da criação, do acerto da vida e do lugar.
Não interessa o conluio da proximidade distante do passado,
Ou a distância do presente intenso, expressivo e mascarado.
Importa a vontade de mover, decididamente, a eternidade,
A determinação de aplacar o inferno e pacificar o mar,
A audácia de prosseguir, seja esta ou outra a realidade,
De sorriso estampado, rasgado, no rosto de fidelidade.
Sim, tropeço, escorrego, erro, mas continuo, bípede, a andar.
Sem pedir, foi-me dado o descontentamento, que rejeito.
Fui arrastado para a indiferença que orbita sem intenção,
Longe de um fundamento, ponderação, senso ou respeito.
Se outro eu, que não o eu de agora e sempre, sucumbir,
Não será por falta de querença, por ânsia de fugir.
Será o destempero do discernimento, em trejeito de arlequim.
Não tenho nada para poder provar a alguém, só a mim,
A dor ou o contentamento, a saudade ou a imprudência.
Bem sei que as perspectivas moldam o modo de sentir,
A verdade pode pertencer a um plano e a uma consciência,
Mas sei que este propósito de salvar e preservar a providência
Pode levar-me a diligenciar a saída e, por fim, a partir.
Carregado de princípios e causas, grandes e pequenas,
Sou um ser humano comum, que sabe de onde vem,
E irei com como estou, com palavras francas, apenas.
Braga, noite de 14 para 15 de Janeiro de 2008.
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