sexta-feira, 14 de julho de 2023

Cubo

  
 
 
Há instantes: 
 
O amor adquiriu a transparência oblíqua da manhã. 
Sentir, que a própria vida é e não é. 
É o Vouga que aflui discretamente no tema, 
Assim como de facto desemboca, de pé, 
Mas sorrateiramente, na ria, um lema 
Que disfarça o mar à ré. 
 
O porquê de viver, de fazer versos, da fé, 
Reside na vida do próprio poema, 
Que a própria vida é e não é. 

  
Neste momento: 
 
O poema lê-nos os olhos, leva-nos pela sua mão. 
Os flamingos aparentam ter sido plantados na ria, 
Flamingos que aparentam ter plantado a aparente indiferença. 
Posso, divorciado, amar a divorciada e ser isto alegria, 
Apenas em mim; numa maré, apenas uma crença. 

O amor e a solidão são, em si, muitas noites de insónia; 
Navios de frustração, à entrada da barra, à espera de ponto, 
Num mesmo porto de abrigo, antigo, sem cerimónia. 

O amor, o seu conceito, é tão diverso como o da solidão; 
É tão vago e impreciso como a própria realidade; 
Tão semelhante e perfeito como a miragem ou a confusão; 
Tão urbano, e a jeito, e tão feito de ruralidade. 

  
A instantes: 
 
A metafisica mais lenta do amor: 
Talvez, amanhã. 
 
 
 [miscelânea] 
 [14 de julho de 2023] 
 
 
 

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Etcétera




Eu já encontrei o amor, algumas vezes. 
Por entre esta cortina inequívoca de pó de anos, 
Creio reconhecer, ainda, o som da sua construção; 
O som das suas labaredas altas ao final dos dias,
Dos quais já não existem as brasas, que ainda existem, 
Nem enganos, talvez um pouco mais do que imaginação. 
 
Eu pintei e pinto palavras impossíveis. 
Recordo-me de vidas nossas, com pensamentos meus, 
Cheios de andorinhas, papoilas e gargalhadas vossas/nossas, 
Onde a primavera se esqueceu de espreguiçar cegamente, 
Em pontas de pés de sol nascente e de amor sem fuso. 
Ou acredito que existimos, podemos existir, 
Um pouco mais ou menos assim. 
 
Poderão viver, em alguém que possa querer, 
Os pássaros e flores, que são um pouco meus; 
As frases e afetos, que um pouco me pertencem? 
Eu gastei, incrivelmente, milhares de versos 
Para continuar, aos meus pés, o interior em obras. 
A estrutura amalgama-se, entre sentimentos em manobras, 
E palavras já sem forma reconhecível e de significados dispersos. 
 
 
 [miscelânea] 
 [18 de abril de 2023] 

 


domingo, 22 de janeiro de 2023

[Não] existem

 
 
 
Eu sinto-me bem, agora, e sei que é só por agora. 
O fantasma traz o teu olhar, com que me captura, 
e o mapa do teu corpo, que me alimenta um não sei o quê; 
uma imensidão, um tudo que era sem fim e que agora é nada, 
quando o nada existe, para além das palavras de outono. 
Outono com um teto de folhas que se precipitam, vazias. 
 
O ar, o silêncio e o tempo, os seus conceitos, estão petrificados e frios; 
o corpo pulsa, vibra, resiste à noite, está quente e vivo. Vive. 
Nem tudo é claro, estou acordado e nem sei se tudo é real. 
O sentimento é intenso e é de dentro. Não há medo. 
Não importa, não me importa, é sereno e é bom.  
É um fantasma, fim de outubro, e ninguém vai acreditar. 
 
Eu costumava ser um rapaz, depois um homem, normal.
Eu recordo, é apenas uma recordação que não se apagou;
Talvez ainda seja um espaço de letras e imagens.
 
 
 
 [miscelânea]
 [29 de outubro de 2022]