sexta-feira, 16 de setembro de 2011

[Em pouco tempo, ou não…] III – Em segredo e condensação




Vasily Perov Blessed One




     Em segredo e condensação



     «Acordo com a sensação de que sempre estive aqui, exposto à intempérie, mas como se estivesse, permanentemente, preparado, disposto e apto a receber qualquer ser: De braços abertos.


     Há uma eternidade que aqui estou e existo, sem pender os braços.


     Atribuíram-me uma função relevante. Sou, humildemente, importante, de grande valor e utilidade para o encargo concedido. Mas, quase todos, de qualquer espécie, diversos, indistintos, zombam de mim: Os que andam; os que julgam andar; os que se arrastam; os que permanecem imóveis; e, igualmente, os que me temem. Os da mesma aparência, os meus semelhantes. Os que se assumem e os dissimulados. Os alheados achincalham-me, também e ainda, com a indiferença, de igual modo que os gabirus. E, de braços abertos, muito para além das bicadas que recebo, afugento alguns pássaros mais distraídos ou prudentes. Pelo menos, estou convencido disso; sinto que é assim. Porém, sinto-me membro de uma comunidade e, por outro lado, como se fosse uma comunidade: A própria comunidade.


     Também sou um desmazelo personificado, mas não há dor, nem pode haver. Tenho esse conhecimento; essa consciência. Não existe pressa, mobilidade ou frio. Receio o fogo e, apesar de tudo, sou feliz! Preso a uma estaca, cravada no chão, existo leve e como que vazio, sempre pronto e presente. O meu abraço, de braços guarnecidos pela consistência de uma vara, não consegue abraçar ninguém. O meu cabelo é constituído por palha, a mesma matéria que parece sobrar do enchimento da minha cabeça; o meu corpo e entranhas são de palha, também. Carrego umas vestes amarrotadas, desbotadas, delidas, fora de moda; calçado antigo, velho, estafado, de pouco préstimo. Ainda assim, porque me desmantelam?


     Agora, extraem-me o recheio, que deitam fora; esvaziam-me; esventram-me. Espalham o meu pequeno e o meu vastíssimo mundo, a minha comodidade e a comunidade, que deixa de ser, que deixa de existir. Dobram-me a vestimenta, que também sou, que faz parte de mim, e guardam-me e guardam, e fecham, neste sítio escuro, que não recordo. E, e, e… E.


     Recordo-me que não sou daqui. É uma vaga ideia que se converte em certeza. Nem sempre fui assim. Relembro o meu aspecto anterior, numa outra eternidade: Cara caiada de branco mate; nariz postiço em forma de bola encarnada e reluzente; lábios grossos, rubros, mas espalmados. Mãos enluvadas, brancas. Roupa colorida, simultaneamente larga e apertada: Camisa com um grande colarinho, mangas com folhos espampanantes, botões grandes, de vários formatos e cores diversas; calças curtas mas larguíssimas nas ancas e coxas, afuniladas e apertadas bem acima dos tornozelos. Sapatos pretos, enormes. Meias garridas, de pares diferentes.


     É curioso como alguns pormenores, as diferenças, as particularidades, como as cores, as crenças, as convicções, a cultura, entre outras, nos afastam, desigualam e isolam dos nossos semelhantes, transformando-nos em seres inadequados, descartáveis, inconvenientes, de outra espécie. Apartados. Por vezes não queremos a cura, queremos fazer parte da doença, quando não queremos ser a própria doença. Por vezes não queremos a solução, queremos fazer parte do problema, quando não queremos ser a personificação do problema.


     Os meus gestos e atitudes, desajeitados, desastrados, despertam e arrancam gargalhadas aos que assistem. Tenho os risos dos outros gravados na minha intensa, consciente, duradoura e dura tristeza. Contudo, sem ódios, sem ressentimentos, guardo a felicidade de ter vivido e de viver. A alegria também se inventa.


     Não sei porque apupam, tão prontamente, as horas e os momentos menos bons. O que resta, para além do muito ou pouco dinheiro que pagam pela satisfação, é o carinho, ou a falta dele, que fica e perdura nos momentos de solidão; é um alimento para o amor-próprio.


     Se é verdade que nem todos os sinais emitem vida, também não deixa de ser verdade que nem todas as vidas emitem sinais.


     Revivo um certo balouçar, uma oscilação familiar, no marulhar dos meus sentidos, dos meus sentimentos e das minhas memórias. Tenho outra eternidade. A eternidade das espumas, das brisas, do vai-não-vai, do vai e vem, das marés, das ondas, das correntes, das tempestades e das bonanças. Venho, com ou sem calmarias, tantas vezes, à praia, para contemplar o mar, e nela fico ancorado. No mar procuro encontrar-me e pescar as respostas para perguntas intermináveis e histórias sem fim. Encontro tanta paz e união neste manancial de agitação e polvorosa, que também sabe ser sereno e onde as palavras também se afogam. A pescaria ocorre em mim e por meu intermédio. Fruo, apenas, do milagre da vida, não encontro outros milagres.


     Abraço a consistência de um sonho eminente, sempre perto do fio de terra, que é de areia, para não perder o pé. Um querubim estouvado derramou uma pequena porção do conteúdo da taça dos afectos e tinge o mar com alguns salpicos de alegria frugal mas firme, balsâmica e aromática. A maresia contagia-me positivamente. Marejado, espalho vocábulos, sem voz, sem dicção, sem caligrafia, apenas com a imaginação. Termos, descrentes de sortes, de sinas, de divindades, mas nunca infiéis.


     Coexiste, na praia, uma grande diversidade em fraternidade, sem a grei; com Sol ou sem o Sol; com chuva e sem chuva; sempre com algum humor. Há tantas imagens e tantos auspícios neste mesmo pedaço de vista e de horizonte, nesta perspectiva que se multiplica. Há tanta matéria com tanto de disciplina como com falta dela.


     Em matéria de identidades, de “eus”, não sou único. Palhaço, humano, espantalho…: Diverso.


     Vejo-me a utilizar uma licença especial de usufruto e tratamento em liberdade do manejar, do modelar, do manipular, da matéria-prima, o elemento básico: A palavra. Permito-me o luxo, ou a pretensão ou presunção, de ser um poeta, mesmo quando não o sou; quando escrevo e quando não escrevo; quando acredito e quando duvido; quando respiro e quando, simplesmente e em simplicidade, vivo.


     Avivam-se-me outras lembranças. Nem sei bem se me desconheço, se me desentendo e se a oferta existiu, tão separada do todo, tão aparada e retocada. O meu retrato em formas que não são as minhas e com sombras vestidas.


     Em boa verdade, enquanto não for aceite, a dádiva permanece pertença do oferente. Não aceitei a tua conclusão, a tua injúria, a tua raiva. A crueldade é tua.


     Em paz, com modéstia e apesar de tudo, ofereci-te, curvando-me, a minha cabeça. Cortaste-a em silêncio, com o silêncio, pelo desprezo e em desprezo, para além do alarido. Agora, pairo e vejo o meu corpo decapitado, estendido no chão. Já o tinha abandonado antes, voluntariamente, não é uma circunstância nova para mim, mas voltava para ele, rapidamente, porque era o meu abrigo, a minha casa, a minha estrutura; era eu e não me queria perder. Hoje, não sei o que me vai acontecer. É estranho olhar para o próprio corpo, inerte, e saber, vivamente, que não é, de todo, funcional, operante. Devo notar que não deixa de ser curioso este sentimento de ser hospedeiro e hóspede simultaneamente. Sem esta ligação, fora do meu corpo, sou muito mais rápido, ágil, mas sinto-me vulnerável. Estou exposto. Fui expulso. O que sou?


     Um fogo-fátuo, principal ou figurado; um peregrino na civilização. Presencio e represento. Sou um actor e um espectador, numa realização e numa projecção metafórica de um lanço de vida. Afinal, a eternidade não é assim tão perpétua.


     Algumas partes do meu corpo esqueceram-se de morrer. Não sabem morrer. Não tem como saber que, agora, é inútil o seu funcionamento.


     Assim, não só estou, como sou, diferente. Sou eu, mas não sou, exactamente, eu. Os pensamentos fluem de outra forma. Tenho o conhecimento das experiências anteriores, que não são lembranças, recordações, fazem parte de mim: Estão. Tudo é e está num tempo, e tem uma duração, que não se equipara a durabilidade apercebida no outro estado, no do corpo vivo que agora jaz. Eu sou, agora, o todo e tudo, daquilo que eu era, sou e continuo a ser.


     Realizo, agora, que sou da terra, do fogo, do ar e do mar. Sou de todos, estou em tudo, e sou tão pouco, tão imperfeito. Não sou propriamente de ninguém e não sou ubíquo. Observo, dou-me a observar. Não sei se me mostram máscaras, a minha, na realidade, nunca existiu.


     O tacto é mais profundo e definido, mas não é exactamente o tacto que conheci. Não sei como agarrar, não consigo, não é, exactamente, agarrar. O odor é mais intenso e não o é. Vejo as formas com outra dimensão e as cores e os seus sons e as cores dos sons – que bela melodia, que bela visão. São e não são as mesmas coisas. As temperaturas não são sensações qualificáveis, são gradientes de uma diferença que não separa. São diferenças de sensibilidade que não consigo descrever, não estão contidas nas palavras conhecidas, mas cabem nas palavras inventadas. Ainda me sinto muito agarrado à vida que já não tenho e tudo isto me confunde e funde. Todos os sentimentos são mais amplos, abrangentes, plenos e absolutos. Ricos. Tudo é abundante e imenso; novo e tão antigo.


     Podias ter-me concedido a liberdade, desembaraçando-me. Podias ter-me perdoado e devolvido a verdade. Tinhas, talvez, o dever e, seguramente, esse direito, esse poder. Contudo, eu não te quero mal, não guardo rancor, não te censuro. Não te condeno. És quem mais vai sofrer e sofres já, sem o reconhecer. É o teu próprio silêncio que te tortura. É a tua justificação que te castiga. A dor é tua e és tu, na frieza da tua solidão.


     Primeiro, todos me vão apontar, eu sei. Já apontam, veladamente, sobre o que eu era, o que deixava de ser e o que serei. Fantasias. Coisas falsas, ou verdades e verdades, e outras meias verdades. Meias-medidas, meias-palavras. Falam em pequenos grupos, em crescendo, até se transformarem num único e grande grupo: Uma irmandade. Tu participas e sabes. Desconhecem que eu sei. Ajudas a avultar e a exagerar os factos. És, agora, a vítima e convenceste-te disso. Convertes a dor do remorso na dor do ofendido.


     Depois, outros, dissidentes, defender-me-ão. Já defendem, sem qualquer crédito. Falam em pequeníssimos grupos, sobre o que eu deixava de ser, sobre o que queria ser e sobre aquilo que viam que eu era, mas não era, e o que era na realidade. Concepções. Umas mentiras piedosas, umas verdades formais e umas certezas, que arreganham e aviltam a tua imaculada postura e integra moralidade. Redobram as razões, que já não existiam, e, ao mesmo tempo, fendem-nas. A tua dor, lamento, aumenta.


     Não sei qual das facções vai vencer, de nada me serve ou vale esse conhecimento. Talvez seja útil, para quem fica, sabendo que não fui exclusivamente, e sempre, inocente.


     Noto uma hesitação que monta a dúvida, num ápice da eternidade que descobri ser efémera. Não sei se deva retirar-me. Se ficar por ali, serei uma espécie de fantasma; uma alma penada. Não me vão querer ver, nem poderão. Ou não.


     As unhas e o pouco cabelo aparentam crescer dentro da caixa escura, mas isso é ilusão. A corrupção, sempre a corrupção e até na morte, embora e felizmente outra, tratará de repor a verdade. Pouquíssimas pessoas assistem à solenidade da desagregação, ainda invisível, do meu corpo e da sua entrega à terra, e os que assistem estão tristes. Não deve ser tristeza, mas uma alegria. A verdadeira liberdade não pode nem deve ser triste.


     As pessoas ficam num lugar longínquo. Escrevo a minha história remota, enquanto a águia voa e o leão corre. A incrível bizarra história. Ou estória generosa?


     Dobrado e arrumado, consigo fazê-lo.


     Acordo com a sensação de que sempre estive aqui…»


  

2 comentários:

  1. Difíceis as segregações sejam de que tipo forem, difícil dosear os sentimentos quando se encontram estilhaçados, complicado gerir os afectos quando nos arrancam sem querermos, mas tudo passa de uma forma ou de outra o tempo acaba por ajudar e chega uma hora que levamos uma caixa de cartão numa das visitas ao mar e tudo o que esta guardado no peito, guardamos na caixa que fica selada e depositada no sótão da vida, nunca nos desfazemos da caixa pois faz parte de nós.
    beijinhos

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  2. texto para ler demoradamente, com passagens muito assertivas e com certezas e incertezas nas suas entrelinhas.

    que somos nós?! somos actores neste grande palco que é a (nossa) vida somos bailarinos, palhaços e arrumadores de sonhos e ilusões, somos nós!

    gostei de ler-te de uma maneira diferente.

    bom fim de semana.

    :)

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