quarta-feira, 11 de outubro de 2017

[Interregno]




Mergulhada para dentro, bem fundo, em pé, 
atrás do balcão, como se não existisse, bate, 
ligeiramente, as asas; compõe a auréola, 
languida, teatral e delicadamente, como se ela, 
a auréola, se pudesse partir num gesto mais 
impensado ou brusco. E eu, que entro invisível 
e fora de tempo, sento-me e mergulho os papeis 
nas palavras onde me amalgamo sem acordos 
ou regulamentos. Ninguém saberá onde começam, 
ou terminam, os papeis, as palavras, eu, a mesa, 
a cadeira e o próprio espaço que ocupamos. 
Entre paredes: um universo. A felicidade procria, 
a um canto. Nas paredes umas grandes nódoas 
da humanidade. E, num dia calmo como o de hoje, 
tudo permanece assim, num tempo desmedido. 
Até que ela, vinda de muito, muito, fundo, 
prepara um café, que eu nem pedi, nem consigo 
recusar, e, em voo, o deixa no espaço que será 
o da mesa, que não é minha. Sem perder tempo, 
antes que me esqueça ou o café arrefeça, paro, 
separo-me das coisas, organizo-me e bebo-o, 
sem açúcar, sem mexer, em contramão. 


 [sobrevoo]



terça-feira, 10 de outubro de 2017

[Asas]




A infusão a fazer as contas a vida, com o seu vapor 
a subir pelo frio do ar, como se quisesse alcançar a lua. 
A lua a brincar com as aflorações da neblina nocturna 
que vem da respiração de um capricho meteorológico. 
Neblina que também brinca com a ria. A ria que exala 
um hálito conciso a mar e a saudade, em partes iguais. 
… 
Nos dedos restam umas cicatrizes em rosado saliente 
e permanecem suspensos na necessária imobilidade, 
a suficiente para mapear o corpo do ar, calmamente. 
Os rebentos de afectos espreitam a sua oportunidade. 
O corpo assimila o visível e o invisível do espaço cénico, 
pelos vários sentidos, e cria imagens de intemporalidade;  
emite um calor envolvente, uma aura imperturbável, 
que limpa todo o volúvel do futuro e salda o negativo 
de todos os anos de existência matemática e métrica. 
... 
A infusão acomodou-se na chávena e arrefeceu; a lua 
existe, mas já não está visível; a neblina transmutou 
e é, agora, nevoeiro; a ria continua a ser ria e discreta; 
e o corpo, absoluta e totalmente, sorri, fora e dentro. 


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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Descompressão




A sombra descansa nos ternos braços da noite impávida 
de olhos fechados, cerrando, também, os seus, a sombra. 
Há um indício de cansaço, na luz de todos os olhos da casa. 
O gato espalha-se, cuidadosamente, em cima dos papeis, 
cheios de gatafunhos; patas dianteiras e cabeça sobre o teclado, 
que vigia com zelo. Reestabelece, assim, a ordem, uma certa 
ordem, que chama, a si, a atenção e a delicadeza. Afago-o 
e enrosco-me em pensamentos. Ele sabe o que há-de escrever. 


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domingo, 8 de outubro de 2017

Solução




Não sei se faz algum sentido: a cidade adquire a imagem 
misteriosa dos outonos. Os canais da ria e as ruas, são, 
neste momento hesitante, canais de neblina vestida 
de conteúdo, que aponta ao instante; que é o alicerce 
da noite e um dos seus fios de vida; que conta histórias 
líquidas de infinitos que brotam do invisível e que despertam 
de sonos profundos, com a delicadeza dos assombros 
de natureza triunfante; que é forma verossímil e absoluta 
da representação do sentimento entregue à substância. 
E eu procuro, em toda esta fragilidade estética, a tempestade 
métrica do afecto, enquanto zelo monstros que fremem, 
convicto de que tudo, tudo, tem uma solução sofrível. 


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sábado, 7 de outubro de 2017

Reflexo




Eu sei que o sol não cai, são as horas da tarde que, a brincar, 
inventam a inclinação do céu, que cria as instâncias da fé. 
A pele acredita, sente e nutre a inclinação do azul e concebe 
a sensação que escorrega para a profunda dimensão da ideia 
de noite. Noite que aparenta cair depois do sol, no mesmo fio 
condutor, com a mesma melodia, com a mesma difusa certeza. 
É nesse preciso instante que, por vezes, a partir dos telhados 
das construções ou da natureza, procuro o derradeiro brilho 
do horizonte, que imortalize o dia e alimente a capacidade 
de me reinventar, de sorrir, de acreditar. De nos encontrar. 


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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Imagens de voo




O voo necessita de ilusão, de pelo menos um quê de ilusão. 
Nos telhados, os pássaros de terracota, dizem tudo num gesto 
suspenso, que descansam quando julgam estar sós no tempo 
e inacessíveis à vista. Esses pássaros de terracota, voam quase 
só para dentro, até ao dia em que um vento certo e incontestável 
os demove, com um encontrão certeiro, e lhes dá uns instantes 
de ilusão. A ilusão suficiente e pertinaz para contrariar a atracção 
gravitacional da terra e proporcionar-lhes a derradeira alegria, 
que outras aves, como, por exemplo, as galinhas, se coíbem 
de conjecturar. Coisas tão banais para todos os restantes voadores, 
para quem, por vezes, durante um segundo ou durante vários dias, 
voar não é tão fácil porque a realidade e o sonho não cabem nas asas 
e / ou o céu ameaça ruir. Não há uma exacta medida de capacidade, 
um tempo certo ou previsível: acontece. É a vida. 


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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Voo limpo




Lembro-me de ter visto nuvens assim, 
como este caminho de quinta-feira, 
onde me disperso, meio dentro, 
meio fora, da vida que vai chovendo. 
Trago, por baixo da pele, polissílabos tradicionais; 
a margem do esforço; monstros que tremem; 
a esperança das águas-furtadas que ficam 
no céu peito aberto; o frémito das folhas 
de almas outonais que procuram o vento; 
um tempo pouco, veloz, de janelas de luar… 
Voo, oitava a baixo, nas ondas gama, 
mãos a sair do papel algibeira de afectos, 
lábios expostos em lugar geométrico, 
onde sou o louco de sempre. Sempre.


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quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Depois do último apontamento de voo




Chegam a cidade mais gaivotas. Tantas que parecem ser todas 
as gaivotas, um único e gigantesco bando de gaivotas silenciosas. 
Tentam acomodar-se pelos canais, pelos terraços, varandas, passeios, 
ruas... disputam todos os espaços físicos numa grandiosa ordem, 
mas, estranhamente, em silêncio. Tudo isto gera uma diversidade 
de sentimentos, que geram palavras, não nas gaivotas. E as palavras 
repetem os sentimentos ou geram novos sentimentos, que produzem 
mais palavras que ganham sons. São agora as palavras que criaram 
estes sentimentos e toda esta confusão, onde: o dia não se importa; 
o ulmeiro ri, perdidamente; a higiene do amor fica esquecida,
como que numa loucura sumariamente albuminada; e o verso voador 
vai de encontro ao vaso de poesia, que esta à janela a sonhar, 
por ver os banais sábios de sempre a debater a luxuria das nuvens. 
Tudo fruto de mais palavras, já em itálico, já em carne viva e pasmos. 
Não se perde a poesia. Não chames o passado, que temos toda a vida. 


 [sobrevoo]



terça-feira, 3 de outubro de 2017

Apontamento de voo




É provável que passem nuvens muito escuras nos teus olhos, 
que descubras monstruosidades desconhecidas no teu cérebro. 
Mas, talvez seja preferível assim, e não o fazer em pleno voo. 
As casas de banho do amor são como todas as outras: 
cheiram mal, se não as lavarmos, e é ali que nos aliviamos, 
até de algumas ilusões, necessária ou fatalmente, é relativo, 
ou fatal e necessariamente. Talvez, demorada e furtivamente. 
Tentamos dar-lhes um ar atractivo, um toque afável, sem assédio, 
ter um quê de aprazível e de dignidade colados ao próprio corpo, 
quase sem luz, porque, quase, quase só sombra, repleto de piedade 
da própria vida e a fervilhar de natureza. Um pouco de audácia, 
outro de cobardia, em partes a gosto ou em partes à sorte. 
Depois, o voo prossegue, a vida não teve, sequer, intervalo 
e, visto de cima, tudo tende a ser, concludentemente, mais belo. 

 [sobrevoo]




segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Uma sugestão de apresentação




Olá, aqui estou, sou de barro e sinto no meu barro o prazer do voo. 
Encontrei a incompreensão, mas, pelo menos, aprendi a conjugar os sons; 
a aquecer-me no vacilo do sol de outono; a resguardar-me das almas 
de paixões sangrentas; e a confundir-me nas sobras da noite e sombras da lua. 

A sombra não morre, a luz confere-lhe um pouco mais de dimensão 
e clareza. As palavras aparecem gastas, cansadas, espalham-se pela ideia 
de existirem para além do criador e do leitor, trabalham essa possibilidade, 
mas não querem morrer. A poesia não quer morrer. O amor não quer morrer. 
Eu não quero morrer. E o céu hesita nos olhos de toda esta urgência narrativa, 
de toda esta urgência de movimento e vida, e nos olhos da multidão impaciente, 
no exacto instante em que retomo o voo. O céu não pode falhar. Eu não posso 
falhar e vivo e voo, mesmo quando o sonho falha, não voa ou morre. 


 [sobrevoo]



domingo, 1 de outubro de 2017

Sobre a ria




Muitos decepcionam-se com a ria, com os seus canais urbanos, e eu não 
os censuro. A decepção é um substantivo esquisito, que existe para perdermos 
o movimento. Mas, talvez estejam a vê-la por fora, apenas, e é preciso esperar 
que se abra; é necessário que os olhos não fiquem suspensos, ou fixos, 
no seu espelho, que nos espelha, ou na sua aparente, mas nossa, imobilidade; 
é necessário investir uns sinceros instantes de atenção para sentir a retribuição 
amorosa da sua alma profunda, generosa, tolerante, compassiva e serena. 
Os encantos da ria têm os seus próprios tempos, as suas distintas dimensões 
e os seus símbolos peculiares, que nos visitam as profundezas do cérebro 
e do espírito, muito além da sua participação plástica, alegórica ou decorativa 
na cidade que se lhe entrega para complementar o real de felicidade. 


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