quarta-feira, 24 de junho de 2015

de visita ao mundo


praia da barra | gafanha da nazaré | ílhavo | portugal [a partir do forte da barra | aveiro]




(silêncio) 

passa da meia-noite 
já não sou uma abóbora 
intensifica-se o galope do sangue 
cresce a saliva 
e as palavras sublinham-me algumas partes do corpo 
de que gostam 
enquanto a noite dele emana para me ler 
e para dissolver a minha sombra 

crescem os monossílabos da insónia 
na fundamentação da deposição da disposição emocional 
sou eu a visitar o mundo 
a joaninha partiu e creio que nunca mais voltou 

(intervalo) 

é dia 
pergunto-me se saberei escrever ainda 
se saberei respirar caminhar viver 
se saberei esquecer e lembrar 
se saberei amar o bastante para o fazer 
se saberei o que é saber 
se para ser amo o suficiente 

(interrupção) 

é dia 
chegou o verão que acendeu os azuis do céu 
daqui até ao outro lado do oceano 
em redor da memória e da sensação da manhã 
a consciência elíptica do universo 
em areais construídos pelas gaivotas 
em fuga para o meu peito 
beije-me a vida ou beije-me a morte 

(inspirar e expirar profundamente) 

eu descobri ou encontrei a vida secreta das pedras 
e passei dias a admirar a arquitectura dos alicerces 
onde as palavras se cimentaram tão cuidadosamente 
que quase esqueceram o tempo e o sabor da luz 
na imobilidade dos seus gestos e essência 

(silêncio) 

fecho os meus olhos para te puder ver 
é o desassossego que me alimenta e sustem 
que me apela à vida e me acorda 
numa tempestade de sonhos e de contornos 
no murmúrio do céu das nuvens 
do rio que desagua na ria 
que como que desagua no mar 
nos redemoinhos de aveiro 
que me procuram o corpo e a imaginação 

(intervalo) 

há um primeiro café que continua a resistência 
há uma memória anterior aos primeiros gatafunhos 
de manhãs sorridentes e musicais 
de noites com estrelas cadentes 
para que eu pedisse um desejo 
onde agora é tarde e só a lembrança alcança 
a partir de julho onde me encontro a afagar a mente 
a distrair o corpo e a empalear a esperança 
na consciência poética das cicatrizes 
onde há uma memória onde ficaram factos memórias afectos 
que não poderiam prever o espaço e o tempo 
que não poderiam viajar de facto de outra forma 
e há um espelho que me devolve o rosto o amor 
a vida o chão o ar o fogo a água de quase meio século 
ao levantar os olhos no último trago de café 

(curto intervalo) 

pundonor talvez ainda me murmure ou escreva a pedir 
contas do que fui do que não fui do que perdeu e do que perdi 
do que poderia ter sido do que não sou 

(silêncio) 

aveiro foi possivelmente o abraço que me dei 
faz do meu desejo uma cidade e uma comoção 
onde o amor tudo é mas onde não vale tudo 
onde também há horas mortas solidão aparente 
silêncio sorridente que rima mima abraça 
numa praça de dias cheios de corpo que se levanta 
cedo que regressa tarde depois de enfrentar as ruas 
de enfrentar intelectos que se extraviam em personagens extremas 

há manhãs tardes crepúsculos noites dias 
que chegam sem versos 
que possam devolver o eco das carícias
mesmo das mais acesas ou de natureza certa cadente doce 
e outros há que transbordam de poesias 
de abraços sem abraçar de beijos sem beijar 
de ver sem ter visto e memorar sem ter vivido 
sou eu a visitar-te… 



 [livro aberto]




2 comentários:

  1. A poesia é uma parte da vida, e a vida só por si já é poesia.bjs

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  2. mais um belíssimo trabalho, que se lê e ficamos a reler a beleza destas palavras

    cito:

    de abraços sem abraçar de beijos sem beijar

    muito belo!

    beijo

    :)

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