sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Recordação previsível

  
 
 
Quantas mil palavras terei de escrever, 
– Ou reservar, silenciar, suprimir – 
Para te libertar dessa âncora de tristeza 
Que te atrasa os dias e que tentas arrastar, só, 
Numa insistência, creio que, cega e surda? 
 
Tanto te pesa o ar, o som, a companhia, o silêncio, 
Os pensamentos, a solidão, o corpo, a alma… 
Tanto te ocupas com nada, para nada, 
Ou para estar só a estar só, ou de fora da vida. 
 
Quantos relógios terei de ser, ou apeadeiros, 
Para que possas ter saudades desconhecidas, 
Para que abandones essas dores completas? 
Porque tanto te pesa? O quê mais te pesa? 
É Amor, que procuras, e aparenta não existir? 
 
Poderemos ficar, senão afastados, apenas 
À beirinha desse abismo de mistérios, 
Dessa escarpa de desilusão, sem inclinar. 
A minha sensibilidade abstrata tem vertigens, 
Muito concretas, e eu quero ser mais, 
Mais do que uma fatigada recordação. 
 
 
 [miscelânea] 
 [19 de agosto de 2021] 
 
 
 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Porque escrevi isto?




Aquela que os turistas não veem, 
Continua a reclamar. A cidade reclama, 
Numa campanha permanente, permanente; 
A qualquer hora de um qualquer dia, noite e dia; 
Erodente, muitas vezes, entre dentes, 
Num aparente, aparente, silêncio. Silêncio. 
Chegou o silêncio, com ele chegou o gato mais velho 
E, na companhia de ambos, tudo continua só. 
O gato adquire a forma de um ovo, no seu nicho, 
Com a cidade ao fundo, no poente, no horizonte. 
Um horizonte cheio objetos, luzes, sombras. Coisas. 
As coisas procuram um fundo que nunca viram, 
Que não sabem ao certo se existe; por hábito. 
 
Talvez o hábito seja o grande sentido da vida, 
À luz desta lua e destas estrelas, deste céu finito; 
A nu, neste hábito de tomar banho e de ponderar. 
Nenhum acrescento se encaixa na missão decidida 
De coração aberto, como uma janela, ao luar, 
A sentir a brisa mansa, humente, tépida, que cogito, 
Lambendo o dia, as sombras, os brilhos, os rumores. 
 
Uma imensa nuvem esconde, agora, as estrelas, 
Adensa o silêncio e com ela chegou o gato mais novo, 
Dengoso, fazendo anunciar que não quer festas. 
Andou numa festa excessiva e ambiciona ausência. 
Come sentado. Mordisca sem pressa, com prazer. 
Gosta de se sentir observado e observa, sente, 
Sem dar a entender, ou assim julga fazê-lo, fingindo. 
Talvez o hábito seja um fingimento e um abrigo. 



 [miscelânea]
 [12 de agosto de 2021]



quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Arrumar a vida




Traduz-me esse teu abraço de ombros encolhidos, 
Tão abraço, tão dentro e tão breve. 
Só lia e só conhecia os teus abraços de ombros caídos. 
 
Talvez te consigas expressar, dar uma pista. 
Dizer qualquer coisa, de uma qualquer forma, 
Antes que o cão chegue, te ladre e a vontade desista. 
 
Os teus olhos parecem perdidos e infelizes. 
Mas brilham, como algo que se anuncia. 
Por dentro, qualquer coisa me mia, 
O cão não chega e tu nada dizes. 
 
Talvez não vejamos e sejamos aprendizes. 
Partes repetidamente, para voltar um dia, 
Para ser uma substância da fantasia 
E largar, no contexto da minha pele, os teus matizes. 
 
 
 [miscelânea] 
 [04 de agosto de 2021] 
 
 
 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Minutos de viagem




Ó motor elétrico, quase silencioso 
– Digo eu de volante em punho – 
Que me trazes a casa tão diligente, 
Em explosões [eu] de raciocínio e gozo, 
Agradecendo a planura da humilde estrada, 
Que nos carrega, tão indiferente. 
Ó motor elétrico, quase como se fosses meu, 
E eu quase me esqueço de ser ateu. 
 
Ah, acelerações suaves, progressão decidida, 
Que sonho lindo de viagem utilitária. 
Se não vamos a tempo de salvar a Vida, 
Salve-se o Verão e a postura gregária. 
Ecologia. Ecológico dentro de ecológico. 
Fantasia. Quase esqueço o dia ilógico. 
 
Consigo ouvir pensamentos em negrito: 
-Que merda, com ares grife e pingente chique! 
-Credo! Regurgito, regurgito! 
-Não sei se chore, se vomite! Se vá ou se fique! 
-Que bonito, que bonito, que bonito! 
-Que é isto!? Não acredito… 
 
Ouço de tudo e entrego-vos a uma Nossa Senhora; 
Ou à salvação a que vos quiserdes entregar, e se aplique; 
A um mantra poderoso, ou a uma ladainha protetora. 
Denunciem-me. Denunciem-me, até que acredite. 
Entretanto, eu, faço o resto do caminho a pé, 
O veículo não me sobe as escadas, nem por fé. 
 
 
 [miscelânea] 
 [03 de agosto de 2021] 
 


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Fluição




O meu cão vê mal e é muito teimoso, 
Assim como o teu amor. 
Respira, liberta-te desse peso dengoso. 
Não sentes como te sufocas 
E a quem tanto queres feliz? 
A tua liberdade reza por ti 
E a confiança brama sob os teus pés. 
Deixa fluir, deixa fluir. Ah, deixa fluir. 
Tropeçaste já tantas vezes. Tantas. 
Tropeçaras outra mais e, talvez, agora. 
Tropeçamos todos. Não vês como eu tropeço? 
Sai dessas horas indecisas e febris, 
Dessas estórias em que a tua vida não é a tua, 
É apenas uma suposição imprecisa e titubeante, 
Que te deixa, e a todos, uma possibilidade de agonia, 
Onde já não és tu, onde a tua vida é a de outra; 
Onde todos se desigualam do que são; 
Onde não param de crescer os enredos e os monstros, 
Ou os unicórnios e os lendários finais felizes. 
Ah, deixa fluir. Deixa fluir, fluir. Flui. 
O meu cão vê mal e é muito teimoso. 


[miscelânea] 
[01 de agosto de 2021]