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(silêncio)
passa da meia-noite
já não sou uma abóbora
intensifica-se o galope do sangue
cresce a saliva
e as palavras sublinham-me algumas partes do corpo
de que gostam
enquanto a noite dele emana para me ler
e para dissolver a minha sombra
crescem os monossílabos da insónia
na fundamentação da deposição da disposição emocional
sou eu a visitar o mundo
a joaninha partiu e creio que nunca mais voltou
(intervalo)
é dia
pergunto-me se saberei escrever ainda
se saberei respirar caminhar viver
se saberei esquecer e lembrar
se saberei amar o bastante para o fazer
se saberei o que é saber
se para ser amo o suficiente
(interrupção)
é dia
chegou o verão que acendeu os azuis do céu
daqui até ao outro lado do oceano
em redor da memória e da sensação da manhã
a consciência elíptica do universo
em areais construídos pelas gaivotas
em fuga para o meu peito
beije-me a vida ou beije-me a morte
(inspirar e expirar
profundamente)
eu descobri ou encontrei a vida secreta das pedras
e passei dias a admirar a arquitectura dos alicerces
onde as palavras se cimentaram tão cuidadosamente
que quase esqueceram o tempo e o sabor da luz
na imobilidade dos seus gestos e essência
(silêncio)
fecho os meus olhos para te puder ver
é o desassossego que me alimenta e sustem
que me apela à vida e me acorda
numa tempestade de sonhos e de contornos
no murmúrio do céu das nuvens
do rio que desagua na ria
que como que desagua no mar
nos redemoinhos de aveiro
que me procuram o corpo e a imaginação
(intervalo)
há um primeiro café que continua a resistência
há uma memória anterior aos primeiros gatafunhos
de manhãs sorridentes e musicais
de noites com estrelas cadentes
para que eu pedisse um desejo
onde agora é tarde e só a lembrança alcança
a partir de julho onde me encontro a afagar a mente
a distrair o corpo e a empalear a esperança
na consciência poética das cicatrizes
onde há uma memória onde ficaram factos memórias afectos
que não poderiam prever o espaço e o tempo
que não poderiam viajar de facto de outra forma
e há um espelho que me devolve o rosto o amor
a vida o chão o ar o fogo a água de quase meio século
ao levantar os olhos no último trago de café
(curto intervalo)
pundonor talvez ainda me murmure ou escreva a pedir
contas do que fui do que não fui do que perdeu e do que
perdi
do que poderia ter sido do que não sou
(silêncio)
aveiro foi possivelmente o abraço que me dei
faz do meu desejo uma cidade e uma comoção
onde o amor tudo é mas onde não vale tudo
onde também há horas mortas solidão aparente
silêncio sorridente que rima mima abraça
numa praça de dias cheios de corpo que se levanta
cedo que regressa tarde depois de enfrentar as ruas
de enfrentar intelectos que se extraviam em personagens
extremas
há manhãs tardes crepúsculos noites dias
que chegam sem versos
que possam devolver o eco das carícias
mesmo das mais acesas ou de natureza certa cadente doce
e outros há que transbordam de poesias
de abraços sem abraçar de beijos sem beijar
de ver sem ter visto e memorar sem ter vivido
sou eu a visitar-te…
[livro aberto]
A poesia é uma parte da vida, e a vida só por si já é poesia.bjs
ResponderEliminarmais um belíssimo trabalho, que se lê e ficamos a reler a beleza destas palavras
ResponderEliminarcito:
de abraços sem abraçar de beijos sem beijar
muito belo!
beijo
:)