sexta-feira, 8 de maio de 2015

não sou eu que perco o tempo, é o tempo que me perde






não há palavra silenciosa. é sexta-feira. 
já acordei, tomei um duche e abracei o cansaço, 
que não me repudia, e engulo o dia incerto 
com anúncios nas bermas, como um laço. 

tu nunca estás em silêncio dentro de mim. 
cruzo-me com desconhecidos descontentes, 
um ou outro sonho aquecido ou abandonado; 
nuvens, chuviscos e esgares que passam indiferentes. 

as vitrinas estão cheias de razões, mesmo na pastelaria. 
são essas razões que me reflectem sem rosto, 
enquanto tomo o café como se fosse uma anestesia. 

há tempo para uns sorrisos ao acaso, com alegria, 
e alguns de caso pensado, porque a noite não é eterna, 
e a vida é um processo impregnado de ousadia… 



 [livro aberto]



terça-feira, 5 de maio de 2015

propriedade






posso chegar num aparente nada dizer e partir de igual modo. 
não me constrange que por nada afirmar me censurem, 
ou por transmitir o que digo da forma que eu penso, o suturem. 

já duvidaram do meu género, da minha verdade, 
das minhas preferências, da minha cor e da minha quantidade: 
eu aprendi a ficar em silêncio no burburinho das palavras. 

posso fundir-me, por inércia ou pela luta, num poema. 
o meu vício é a poesia: a que leio, a que escrevo e a que sou. 
e posso amar em rimas brancas e nos silêncios por onde vou… 



 [livro aberto]




sexta-feira, 1 de maio de 2015

comparável






olhava para a dor da escrita do código do amor, 
a ondular à superfície da pele e da folha de papel 
como uma miragem a ajustar-se ao dossel. 
depois, ergui os olhos e vi a serra a agigantar-se 
num súbito horizonte, onde as grandes e as pequenas 
perguntas se espalhavam pelas encostas, em cantilenas, 
ambas tão cheias do bolor das paredes e dos tectos 
da expectativa alheia, entre coordenadas de acontecimentos. 
prossegui o caminho, no sentido contrário ao sol e eventos. 
não me serviu qualquer tempo, nem o próprio vento, 
e a chuva, ocupada, acariciava o tojo de mãos erguidas. 
as borboletas diziam-me: «olá!» - em alegrias repetidas, 
e eu alegremente lhes ofereci o meu passaporte, 
enquanto procurava o meu oráculo. mas eram as pistas 
do sol que vinham esconder-se em mim, optimistas. 
por vezes, encontravam-se com as pistas da lua, também 
em mim escondidas. em breve eu estava de partida. 
esperavam-me poemas moribundos a duvidar da morte e da vida; 
versos sem salvação que vinham em auxílio da redenção; 
poesia à procura de melhor sorte que a do tempo já contado. 
e eu tão fora e tão dentro de mim, tão leve e arejado… 



 [livro aberto]



terça-feira, 21 de abril de 2015

é






um gato descuidado atravessou apressado, com final feliz. 

hoje as palavras serviram o caminho 
que seguiu viagem rumo à noite. 

o horizonte foi ganhando a ilusão de um sonho, 
em manchas matizadas de cores vivas 
conquistadas ao azul e ao fogo. 

as pedras não mentiram, nem perguntaram. 
as pontes repetiram as ligações, mas mais fundas, 
enquanto as memórias se enrolavam numa frase deitada 
à sombra de uma canção quase antiga, com aviões na letra. 

um verso protocolar, que farejava os sentidos, 
juntou-se a outros versos e, como uma matilha a revolver 
o lixo existencial depositado na berma, também seguiram. 

mas são os sorrisos que salvam e são os sorrisos que guardo 
e me levam a outras e novas praças cheias de luz. 

chego, para começar de raiz, e de permeio um abril… 



 [livro aberto]



terça-feira, 7 de abril de 2015

desenvolvimento





de acreditar deixei em quem apenas vê 
o seu mundo; em quem apenas a sua 
dor sente. eu desconheço o quanto destes 
dias me pertence, o quanto de mim eu sei. 

há dias que não pedem explicações 
nem eles explicar se conseguem. 
dias em que as letras não perguntam 
se para tantas palavras tenho olhos 
suficientes; dias em que não necessito 
distinguir de quem é a demência, 
ou se existe, sequer, essa tal loucura; 
dias sem frases feitas sobre o amor 
ou a pobre necessidade de culpar alguém. 

para os outros dias sem fundo: 
eu sei de um lugar, à beira-mar, 
onde eu posso ficar a desejar, 
longe de suposições e expectativas 
que, não sei como, desaguam em mim, 
rápidas, tumultuosas e evasivas, 
e eu, com a natureza, não discuto; 
um lugar onde a própria lua se iguala 
à dor e às sombras e os corpos tem 
a consciência de pertencer à terra 
do chão que amanhã irão pisar; 
um lugar onde é o vento diverso 
que o livro da existência folheia… 



 [livro aberto]




quinta-feira, 2 de abril de 2015

mais eu


aveiro



se estou só, de quem mais poderia 
ser esta sombra que me acompanha? 
de quem mais poderia ser esta noite? 
de quem mais poderiam ser os sonhos, 
que se acotovelam em meu redor 
e todas estas estrelas e a lua? 
não fosse o colorido da memória dos teus 
beijos, a deixar rasto na névoa da esperança 
e a preencher-me com versos frescos 
e com o sabor das ondas sem dores, 
mais caminho se perderia, mas 
talvez mais eu me encontrasse… 



 [livro aberto]



quarta-feira, 1 de abril de 2015

sem emenda




o dia são remendos sobre o azul que escureceu. 
deixei para trás os fantasmas normativos de papel, 
apaguei os privilegiados monstros digitais 
e extingui o espectro das chamadas misantropas. 
ressoam os suspiros e o bater do coração das estátuas. 
ainda vivem as miragens da tua vida sobre o meu peito 
e do pôr-do-sol desmaiado nas tuas costas nuas; 
do sistema solar que nos hospedava, itinerante; 
da longínqua existência de momentos remotos 
com controlo secreto e apertado, onde se idealizava… 



 [livro aberto]





segunda-feira, 30 de março de 2015

conclusão





esquivo-me das palavras emboscadas em memórias, 
enquanto bebo o fim da tarde liberto e acidental. 
tudo é tão relativo neste corpo de resistência, 
fora da lógica espacial e da linearidade temporal. 

com o caramulo* no colo e a lua nos ombros, 
poderia ser qualquer um de vocês de forma sazonal. 
mas sou só eu, do outro lado da geometria do espelho, 
auto-excluído de um destino traçado ou astral. 

as perguntas que faço à natureza, nesta encosta, 
recebem sempre a mesma constante resposta: 
«o que foi?!» – que ecoa até ao nascer da serra; 

até se entranhar longamente na própria terra. 
depois, um abraço perdido que me acalenta e descerra, 
um afago sob a forma de proposta...  




 [livro aberto]


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

à condição


gronho




os silêncios a tentarem fazer sentido. 
talvez natural fosse ter o teu calor 
e o teu cheiro neste demorado abraço, 
mas nas noites e nos dias de água 

flutuam outros rostos e outros sonhos 
que remexem a terra das nossas raízes. 
esgravatam à procura de lembranças 
que existem apenas em fantasias feridas. 

abdico da lamúria e do desânimo do frio, 
que de frio treme e se parte contra o rosto 
em letras pequeninas, numa inexistência 

orgulhosa, enquanto eu suspiro em meio-tom. 
é o tempo que grita o meu nome ao vento 
porque, é o tempo que não me tem. 





  [02 de fevereiro de 2015]

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

espaços





recordo as mãozinhas frágeis e seráficas 
de avó em alheio inocente. e as minhas, 
tão diferentes, em duro apoio de cabeça, 
guardam os vórtices de palavras apressadas. 

um gemido sinfónico de mansarda antiga 
ameaça diluir o arrojo de um hesitante 
esconderijo apreçado ao silêncio ponderado 
e de uma inequívoca imobilidade fractal. 

conjugo os sentimentos e as faculdades gastas 
como quem conjuga os verbos na terceira pessoa. 
e, apesar de tudo, ainda tenho um caminho. 

a lua é uma perífrase que amanhece nos ombros 
de quem se agarra a mais uma risca do universo. 
há, decerto, poemas nas entranhas do céu. 




segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

inexistências


farol



perdi, algures, a gentileza de dizer adeus! 
talvez por não partir completamente, 
na ilusão de ter, comigo, quem fica ou vai, 
numa forma substancial de proximidade. 
  
enquanto remexo nas folhas do meu peito, 
tacteio a terra que nele transporto. hoje, 
tudo é tão frio e distante por aqui. porquê? 
eu que me contento com um pedacinho 

de céu azul, com um cantinho de chão verde, 
ou com umas gotinhas do oceano no horizonte… 
sinto toda a fragilidade destas linhas do ciclo 

da vida, que não quero ler. conheço-as bem. 
tem palavras abraçadas, que esperam abraços… 
mas eu estou cansado de abraçar o vazio. 




sábado, 24 de janeiro de 2015

oh!






um dia tudo vai acabar no início, 
num arrojo de fomentar e agitar 
o silêncio sideral. entretanto, 
há poemas vivazes no céu, 
que nos fazem adernar as sombras 
e dias em que o mar fica a olhar para mim 
várias horas, a fotografar-me os sonhos 
quando as palavras são pecados mortais 
e nós somos apenas perenes quando em paz. 
emmentes, abandono-me, espontaneamente, 
aos tumultos das ondas e das marés. 
são, simplesmente, movimentos de embalar 
e reticências que incitam a esperança. 
é o vento das boas-festas que me levanta 
e me leva para outro lugar. 



  [19 de dezembro de 2014]