quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Síncope




Fecho-me, com o dia. 
O tempo hesita num triângulo de luz. 
Não faltam os pássaros e uma aragem de ria 
na antiguidade da cidade 
(Alauario, hoje, com pouco sol), 
como orla do pensamento, que sobrevoa 
o final de um agosto frágil. 

Se, em Portalegre, a sombra cresce com a serra, 
numa evolução aérea, 
em Aveiro, a sombra cresce para o leito da ria, 
num desenvolvimento aquático, 
igualmente rústico. 
É assombrosa a velocidade da sombra, 
assim como a velocidade da ausência, 
ou como a velocidade da estupidez. 

Ao longe, 
talvez não demasiadamente longe, 
uns agitam bombas e ensinam a guerra 
a falar grosseiramente; 
outros leccionam o conflito às palavras que sacodem; 
outros, ainda e naturalmente, fazem tudo isto, 
de uma só vez. 

Eu, só quero estar só. 
Trago nos olhos as palavras que não digo, 
porque, por vezes, 
de certa ou alguma (boa) forma, 
o silêncio deixa quase tudo claro, 
e falar, ou escrever, gera um ruído excessivo. 
Mas nem sempre é assim. Eu sei, 
ou quase sempre vejo essa margem. 

Sabe-se que são coisas, 
só coisas, 
apenas coisas. 
Fecha os olhos e olha para um sítio diferente, 
bem dentro de ti. 


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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Leveza




«Não tenham pena de um qualquer meu voo triste.
Temo que, para me protegerem, me sobrevoem,
enquanto, eu, também, voo, sobrevoo, ou, simplesmente,
ando. Há quem atire terra, pedras, coisas, balas, bombas,
palavras. Não forçosamente por esta ordem potencial
e crescente de grandeza, não necessariamente todos
os elementos desta lista e sem aparente, ou viável, motivo.

O verão, veraneia-se. É sempre um dia de um dia
qualquer. Vem as estradas a andar, a água a nadar
e o ar voa. Acende-se a luz da luz e a possibilidade
das árvores cresce na sua própria eventualidade,
como nas pessoas das pessoas.»
– Confidenciou-me o ulmeiro.


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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Meia parte




Início de cor, na evidência da velocidade da sombra,
repleto de ciência, debruado na inércia da maré,
visto de cima, passado o sono: abre-se a imagem.

A um silêncio de um pão, para serenar a fome,
pousou a ria, com um não, num gesto singular,
fixando as águas positivas em toda a sua geografia.
Nas pupilas, guardou as objectivas e a gravidade
da câmara, com um cerimonial vaporoso, em flor,
minuciosa, sem dúvida e com sal, enquanto levedava
um voo de prosa e outro de poesia, no meu corpo
de pássaros rosa-simpatia do tempo das nuvens.


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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Umas semanas depois




Por vezes, iludo-me. Penso que já não sou exactamente 
eu, precisamente o mesmo. Mas, o que mudou foi aquilo 
que ficou e o que partiu, ou a suas imagens, e os reflexos 
de estar sem ser e de ser sem estar. Compreendo o saldo 
do amor como um sorteio da poesia num instante preciso 
e, contudo, alegórico, de ventos mais ou menos pacientes. 

A janela abre-se por dentro, no cérebro, e o seu tempo 
não pára, como no caso do tempo das ruas, que quase 
ficaram na sua época e agarradas a um nome de acaso, 
por obra do mesmo, acaso, e que lhes guarda a sua 
ímpar distância, quando um homem não as emaranha 
numa nova vida, para castigar as memórias dos vivos. 

Sempre que olho para a ria, vejo que nunca daqui saí 
e reparo na minha mais natural sugestão de apresentação: 
um fogo, uma terra, um ar, uma água, um metal: líquidos 
e simples, que, podendo estar em qualquer local, são 
de um ponto único, de lugar nenhum e de toda a parte. 
É este o regresso à casa de partida e os dados são aéreos 
e estão, fantasticamente, viciados. 


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segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Mais um poema azul



Enquanto a sombra não cresce em direcção ao céu,  
reduzido [eu] à insignificância da minha espécie e embrenhado 
na anarquia de vida que aqui regurgita, apesar da seca, 
explode-me o olhar sobre a imagem trémula das planícies, 
de onde medra a luz e o próprio calor, que trava a respiração. 
Nasço, uma vez mais, em milhares de palavras de serra, 
da serra de São Mamede, como se aqui tivesse nascido e, 
também, aqui nascesse o mundo, ou a sua pele, durante 
todo o dia. E é a serra que (embora possas discordar ou 
desgostar) põe o sol em movimento sobre todas as coisas, 
como Portalegre, que se junta de mil pedaços, numa mesma 
imagem viva. A cidade une os gestos da paisagem cerebral, 
assim como os meneios e a oscilação da paisagem física, 
e compõem a imensidão de paz, que é a nossa alma comum. 


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quarta-feira, 9 de agosto de 2017

De novo



De novo, pelos versos da serra de São Mamede, 
onde a poesia está livre de perigo, e sentado nela, 
serra, como que numa grande varanda, diante 
das planícies, da alegre cidade e sob um magnífico 
céu azul, tudo aparenta pertencer aos primeiros 
tempos de almas mais simples. Pouco há a explicar: 
encontro nas palavras um confortável e natural silêncio 
e se me recordo da vida, não é para a amaldiçoar 
ou lastimar, sequer, porque, foi, e é, aquilo que poderia, 
e pode, ser: o turbilhão da cor que quiserem que seja. 


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terça-feira, 8 de agosto de 2017

Hiper



Visto daqui, e de agosto, maio aparenta ter parido maria, 
durante anos, e uma efemeridade de gemidos de flores 
e de velas, que se apoderam do ar, muito depois 
de tomarem a terra como sua, como frémito de amor 
materno de personagem principal: o ulmeiro, de outros 
poemas, adoeceu irremediavelmente e procura o conforto 
do refúgio absoluto, entre as personagens, e as paisagens, 
secundárias; o meu moliceiro tem a cor da ria e confunde-se 
com ela; sei que nunca irei transformar as madrugadas, 
que não tenho, em dias que ninguém pode ter. Talvez, em 
parte, por isto, o vento se apresse a esticar o acinte da linha 
do horizonte que cia o verde dos grandes acontecimentos. 


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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Rasante



Finjo o olhar. Não há uma sombra. Há um resto de papel 
para os inúmeros caminhos que voam contra o peito cheio 
de pássaros. É preciso limpá-lo, o peito, antes do vento. 
A hora é líquida e a tarde: indisciplinada e sem matrícula. 
Apesar de tudo, há uma réstia de esperança e de felicidade. 
Já me sinto a entranhar no corpo de palavras da noite. Não, 
não é uma réstia, é como que um manancial de possibilidades: 
um livro de contos e dois livros de poesia. A evasão perfeita, 
de momento, ou a ilusão de uma cura vertiginosa e indubitável. 


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quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Acidental



Que mais poderia eu fazer? A bibliotecária castigou-me,
(e justamente) sem castigar, com o olhar, fatigado, já no próximo
ano, e com a culpa de todos os males a cair, pesada, no colo
do programa informático, pelo atraso, de um dia, na entrega dos livros.
Um dia de castigo. Já não podia regressar a casa, como pessoa,
e distinguir-me do eclipse que ganha a imprecisa dimensão da ausência.
Fiquei a ler, demoradamente, horizontes e as estradas
de embarcações que representam vidas e passados improváveis.
É a vista do fim de tarde: a ria urbana tão cheia de gente
eventual e os flamingos tomam plena posse da cidade selvagem.
Nenhum moliceiro, ou batel, me poderá levar tão longe
que me tire daqui, nem deste tempo emprestado.


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quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Como nas conversas



Na fronteira da área de uma meteorológica conversa,
poderia dizer-te: cá se vai andando, um poema de cada
vez. E esqueceríamos o júbilo das latitudes onde a poesia não
se diz, nem a depressão do seu mais pálido e estranho reflexo
se vê. Mas deixemos o enfadonho rumor e delírio dos pressupostos.

Vamos além das fotografias. Ou entremos nelas,
na imobilidade fulgurante das suas imagens,
sem, contudo, trazermos, ou perturbarmos, a sua
inércia esparsa, vestida de técnica estética.

O verão chegou ao canto das minhas costas
e, voluptuosamente lento, não encontrou saída;
circundou-me; encarou-me; fixou-se num punhado
de sentidos e desenhou formas de transfigurar
os sentimentos dos meus mais fundos nervos.

Acendo-te a minha luz, uma evidência, para que entres
por baixo da minha pele. É possível afugentar a morte.


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terça-feira, 1 de agosto de 2017

Sobrevoo



No que acreditas, e onde cabes perfeitamente, é o espaço
entre o teu subterrâneo e o teu extremo de universo.

A mim, doem-me os pés de tanto voar e as palavras sonham
o poema, longa e desnecessariamente. Desconhecem o ténue
fio do tempo; o seu ponto morto; a sua fugaz espectacularidade;
e a sua linha, frágil, de costura, que se purifica no azul do céu,
assim como no branco da noite que cai depressa demais.
Tudo isto se espessa na espuma de um café expresso, fonte
de resistência, onde, também, falta o tempo, numa miríade
de bolinhas de ar quente, aromatizado e apressado, à procura
de um sentido que ganhe a sua distância, ou que se aninhe
num peito receptivo, num instante certo
e de desnecessárias explicações.


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