quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

olha




poderia viver só do olhar, naquele que é o gesto 
de nos olharmos mutuamente nos olhos, onde 
nos aninhamos e escorremos como as gotas de água 
nas vidraças dos prédios insuficientes para albergar 
o delírio do peito desarrumado, muito antes 
da chegada das mãos laboriosas que incluem 
aquilo que a vida teima dispersar por capricho. 
olhos nos olhos, soltamos todas as palavras 
de êxtase e paixão, que terminam os silêncios 
da noite e determinam os seus ruídos, com 
ou sem luz, nas sombras da audácia e da sorte 
das viagens pelos nossos relevos e lonjura. 

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estaríamos a


portalegre | portugal



ouvir o silêncio, tocar no nada, ver o infinito… 
creio que não foi esta a nossa maior loucura, 
quando a solidão nos entrava pelos vidros 
das janelas e nos mostrava o amor num espelho 
embaciado, onde a noite nos cingia o peito. 
horas em que ocupávamos o silêncio dolente 
e, com um único suspiro, o transformávamos 
num grande bulício, onde cabiam todos os termos 
dos afectos que produziam atalhos e pontes, 
em segundos, e que abeiravam todo o universo. 
talvez não devêssemos ter confiado as nossas 
dores ao labirinto do destino que confunde 
as palavras e os hiatos de tempo disponível, 
que nos deixou de mãos enlutadas e ociosas. 
mas não foi exactamente assim que fiquei. 
o meu avô partiu e o mar, para e não por mim, 
continuou a parir o poente de onde me resgato 
todos os dias para arrumar sonhos e factos, 
ouvir o silêncio, tocar no nada, ver o infinito… 


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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

coisas de pombos





renuncio às objecções emergentes das artérias
que conduzem o sangue à emergência da vida.
é outro, o pasmo de possuir sem ser dono
ou locatário, como o separar dos gomos
do espaço onde te irás alojar em mim,
até à transformação do meu nome
num determinante gramatical.
desço, até ao fundo do teu ventre,
num enigma compreensível de afecto,
onde eu nos invento nas balizas da pele,
para transcender a existência e a duração.
conduzo o sonho à urgência das mãos zelosas. 
parou de chover. os pombos ensaiam novo voo. 


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lembrete


aveiro
aveiro | portugal



na inquietação do vislumbre da luz do início do dia, 
o corpo a aprender a temperatura do inverno 
que não se prende, nem se reproduz, no fotograma, 
mas que se fixa no encrespar do aveludado das coxas. 
as sílabas desprendem-se em meneios instintivos 
mas, já não é tão fria como costumava ser, a cidade. 
por isso, tento tocar-te sem recolher as marcas do espaço. 
os meus lábios afogueiam num mistério indecifrável 
e preenchem a lacuna e o tempo da hesitação das sílabas, 
na têmpera da carne viva da nossa matéria que adolesce. 


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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

súbito


aveiro  portugal


o voo é agora uma vontade adiada, para o pesar dos pombos. 
a chuva cai distraidamente, sem imagens de ressentimento, 
sobre os cartazes de políticos sorridentes, que tentam exercer 
um encantamento de confiança e amabilidade permanentes. 
a voluptuosidade do comprometimento é uma deserção anunciada. 
a cidade não necessita de mais sorrisos poluentes e penosos, 
visitações sarcásticas, pejadas de meras promessas provisórias. 


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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

como quem percebe


aveiro | portugal


por vezes, é difícil e aflitivo despir 
a metafísica, mas, é forçoso. 
afinal, nunca foi um caminho de luz. 
a luz existiu, sim, e existe, mas não, 
não foi o caminho. esse caminho 
existe, quero acreditar que existe, 
mas esse não foi o teu, nem o meu. 
a coragem também é saber desistir.


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domingo, 17 de janeiro de 2016

inverno


aveiro | portugal


na cortesia de corpo sensível e acessível, 
a extravagante alegria efusiva de estar 
educadamente só. alcançou-me, nessa 
condição, o inverno, que se veste 
elegantemente, mas nunca o suficiente. 
sinto-o como ele é: gélido e imprevisível, 
mas comunicativo, também, e confidente. 
e eu, tímido, num corpo experimentado, 
aparentemente intransmissível, queria 
falar da felicidade e da geração desistente. 
eu era todo poesia e o inverno só queria 
chover e arrefecer. 


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pronto


ponte d. luís I | porto | portugal


qualquer coisa pode ter um, 
ainda que breve e fugaz, passado. 
era essa a nossa humidade cristalina 
e crescíamos no contentamento. 

demos frutos inacessíveis. 
reconhecemo-nos no acto da espera, 
enquanto fingíamos ter corpo 
com abraços ternos e desobedientes. 

aqui, os dedos, morriam, corteses, 
para tocar a alma arfante e suspirante 
do lado oculto da janela por abrir. 

quando te recordo, percorro o flanco 
dorido de um sonho incandescente, 
entregue a humildade de partir e partir. 



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sábado, 16 de janeiro de 2016

até!


[intencionalmente desfocado]



com um passado infiltrado na pele, 
educadamente cega, surda e muda, 
atravessámos o reverso do coração. 
igualmente cinza, fomos, solitários, 
de combustão em combustão, sem 
destino marcado, ardendo num 
mesmo fogo, sobre a polpa do mundo. 
percorremos a imperceptível fronteira 
dos poros, com os lábios sequiosos, 
para alojar os beijos irrequietos 
e bebemos do que viria a ser pó. 
esculpimos o amor que nos abria 
portas, mas não havia razão de ser. 
abotoados pela vida, transitámos, 
secretamente, por quartos e camas 
sem existência, para alojar o afecto. 

a distância que te percorro, a tontura 
que se instala nas palavras inquietas, 
surpreende o tempo, instala-se naquele 
mesmo lugar que permuta a exaustão 
e circula no vazio de todas as coisas
feitas de luz. uma memória desprotegida, 
mas não amarga. 


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limite




entre silêncios cresceu um verso, 
uma parede com uma porta aberta 
com uma boca a ditar sussurros. 
tentei descrevê-lo de várias formas, 
sabia que era possível que não visses; 
que pudesses não o entender;
que tropeçasses no muro. 
e colidiste. 



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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

contorno




as sombras são cúmplices com uma própria 
urgência. num instante baralham e transformam 
as pistas que nos encaminham para a saída. 
ignorá-las significa ignorar a possibilidade 
de cair; recordá-las expressa o discernir 
da distância que produzem dentro de nós. 
acredito que nos tenhamos afastado, 
inevitavelmente, da mesma fonte de luz. 


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subterrâneo




a doce e forçosa fragilidade das estalactites, 
promovidas pelas diferentes gotas de água 
que encontraram sempre o mesmo destino, 
lenta, lentamente, transformaram a gruta 
num sumptuoso palácio. abraço a alegoria, 
a primeira, num abraço fraterno e conclusivo. 

para aqui chegar: percorri vários caminhos, 
tempos vários; diversos espaços, e cores, e sons, 
e cheiros, e gostos, e texturas, e temperaturas; 
diferentes pessoas, tão distintas ou tão iguais; 
múltiplos animais e vegetais. abri e fechei tantas 
vezes os olhos, bocas, mãos, braços, portas, janelas, 
livros. vivenciei histórias, suspirei, ri, chorei, falei, 
calei, li, escrevi. amei e voltei a amar, algumas 
vezes. sou e estou diferente. muito do que escrevi, 
e que ainda existe, perdeu-se nesse trajecto. 
ajudou-me a chegar aqui. proporcionou-me 
percursos, atalhos, carreiros, avenidas, vias 
rápidas e foi transporte, abraço, sustento. 
algumas estruturas são rudimentos simples, 
e/ou ingénuas e/ou pobres e/ou frágeis. 
são memórias que não se deixam alterar, 
que alguns julgaram, por vezes, ser para si 
e outros nunca chegaram a saber-se ali. 



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