sábado, 30 de janeiro de 2016

derradeira decisão



finjo que o sol se afunda no mar 
para sustentar o sonho de o poder salvar 
logo pela manhã, enquanto ainda voo fresco. 
mas, já encontro dias em que me falham as forças 
e, entre a espada e a parede, o que quero e não posso, 
agarro-me a ironia de, estúpida e despudoradamente, acordar. 


 [palavras relacionadas]


madrugada





no recolhimento da madrugada, exposta 
à geada em acto peregrino que lhe colhe 
a dimensão, absolvia o dia e o corpo. 
a madeira do corrimão da escada entoou 
um qualquer queixume que entrou, como 
um intruso, no meu sonho recursivo e antigo 
de uma casa que só nos sonhos existe. 


 [palavras relacionadas]


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

licença




estou a encontrar-me à medida que me perco, 
não sei se não será o tempo a consumir-me a sanidade. 

no início havia um tempo que parecia infinito, 
agora há tempo que parece finito e volúvel. 
a relatividade aparenta-se a uma besta voraz 
onde as próprias circunstâncias perdem a convicção. 

não tenho qualquer controlo sobre o lugar esquivo 
da leitura e o que menos importa é o que devo 
ou não devo escrever sobre a extensão do tempo. 

não estou a revoltar-me no meu próprio delírio. 
creio que é a consequência do encontro sagaz 
da poesia, da filosofia, com a consciência da finitude 
e da contingência, promovido pelo distanciamento. 
ou é a vida, que continua, sem pedir licença à vida. 


 [palavras relacionadas]


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

se, porventura, procurares


praia da barra
[praia da barra | ílhavo | aveiro | portugal]


sim, conheço os sentimentos de esferovite. 
o pior é vê-los a esboroar nos reflexos dos olhos 
de quem finge passear nos nossos sonhos. 
basta-me essa dor de ver sepultar as palavras. 

sim, conheço os sentimentos de posse 
que conduzem a lugares sem regresso 
e sem tempo, que fingem ser o único 
destino e nos cegam, ou alheiam, o futuro. 

desejo mais ser do que temo parecer. 
há muitas formas de dizer que te amo 
num sempre tempo de amar 
e eu estou no avesso das minhas palavras. 
estou nos gestos, do lado de fora dos espelhos. 


 [palavras relacionadas]


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

que venha o tempo




que venha o tempo dizer-me
que estou louco, que já não há
futuro nos abraços comprometidos.
que venha o tempo, como uma pedra
no sapato, presumir-me os sonhos
que sobrevoam os meus olhos.

agora, abraço as palavras.
esperamos pela geada,
com a alma disponível ao engano.



 [palavras relacionadas]


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

insinuante


praia da barra | ílhavo | aveiro | portugal


(inspira e expira profundamente, uma vez, em silêncio) 

há uma sensação de vaga à flor da pele, 
tão próxima da ficção. tão densa. 

(respira demoradamente, para sentir e intuir o ar) 

a imaginação a ditar telefonemas cordiais, 
no conhecimento poético da tua voz imaginária. 
versos que devolvem o rumor do teu gosto, 
a luz das tuas mãos, o calor dos teus olhos… 

(breve silêncio. respira) 

os redemoinhos de sonhos que fecham os olhos, 
enquanto eu fecho os meus, para despertar os gestos 
profundos e cuidadosos que alimentam a vida, 
expõem o vazio dos lábios, que movo sem produzir 
qualquer som, num gesto primário e de antecipação. 

a noite trouxe os pretextos da saudade. 


 [palavras relacionadas]


pentagrama


Kandinsky, Wassily
pintura de Kandinsky, Wassily - Composition VIII. 1923. Óleo sobre tela*



preencho o pentagrama de linhas paralelas, vazio, 
disponível para a relatividade, com outros símbolos: 
palavras à solta, de duração perene e tempos de estação. 

por momentos, escrevo-me em notas fora da pauta, 
sem letra, num som difuso que é a tua voz. 

talvez eu possa ser a clave e tu o instrumento… 

ou talvez eu nos confunda sem padrão, onde as notas 
são os nossos sentimentos, em carícias que se encontram 
entre semibreves e semifusas, num compasso 
que é o nosso próprio passo de figuras sem partitura. 



 [palavras relacionadas]


*
   a legenda contém atalhos para mais informações sobre o pintor e o quadro.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

mercê


aveiro | portugal


o fascínio vem sempre no interregno 
e é no interregno que vem as recriações. 

temo que todos os gestos possuam ardis 
mas, reescrever-me-ia em poemas de gestos 
intransmissíveis: actos de inclusão. 

publicar-me-ia na tua pele, benigno, 
indelével, em carícias suaves, ao de leve. 
mas também intenso, agradavelmente, 
na flagrância das sensações. 

abro o ar, no escuro, e avanço. 
os meus dedos não te sentem, 
distinguem a voluptuosidade da brisa. 

a ria encosta-se ao meu ouvido. 
alusões líquidas num insondável afago, 
dimanação de delírios transparentes. 

cresço na espera, prematuramente. 


 [palavras relacionadas]


domingo, 24 de janeiro de 2016

descruzar


aveiro | portugal


vamos participar da queda que é precipitarmo-nos 
nas falésias do amor, de onde se pode regressar. 

entretanto, vamos traduzir os silêncios, 
trocar silêncios, pintar silêncios; desfazer, 
destrinçar, reparar silêncios, naquelas 
arcanas formas de comunicar, que não 
incluem palavras; enquanto eles antecipam, 
prognosticam, disputam e falam de política. 

vamos chover, enquanto eles falam de futebol, 
e juntamo-nos ao tempo, que é de chuva. 

arqueamos as linhas do espaço e do tempo 
para nos descobrirmos juntos, nas tortas 
linhas da poesia, que podemos estender. 

vamos. eles que fiquem oblíquos nessa espera, 
convictos de que a dor lhes concede a salvação. 


 [palavras relacionadas]


sábado, 23 de janeiro de 2016

espera abraço espera


portalegre | portugal


há um momento em que se é a espera, 
a mais complexa das esperas, que é aquela 
que se sente mais dentro e que somos nós; 
aquela que, sem nos desesperar, desespera; 
aquela que é sedenta da própria sede; 
aquela que inclui um abraço por acontecer. 

há um momento em que se é o abraço, 
o mais complexo dos abraços, que é aquele 
que se sente da forma mais simples; 
aquele que abraça a própria espera; 
aquele que se sente sem se sentir 
e que continua a abraçar sem o ser. 


[palavras relacionadas]


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

imprecisa


portalegre | portugal


vivo à medida que graciosamente morro. 
neste instante em que as horas escurecem 
e se alcantila a incontinência do céu, 
há uma imagem que se turva na rebentação 
que embala os cachos de mexilhão intrépidos 
e o mundo abre-se nos gomos da minha cabeça: 
construo-te, nocturna, no meu corpo. 


 [palavras relacionadas]



densidade





poderíamos acontecer, como quem relaciona palavras; 
libertar a ânsia de anoitecer numa onda hesitante 
que ascende nas rochas das distâncias e demoras; 
suceder na secreta magia dos sussurros ao ouvido 

que se funde na respiração e entrega, em pequenos 
e suaves beijos, os recados de um poema íntimo; 
respirar as fragrâncias do corpo entregue as carícias 
morosas, que mantêm despertos todos sentidos; 

experienciar o torpor de ficar zonzo nas múltiplas 
e simultâneas sensações em turbilhão, no verso 
e reverso da pele abandonada ao amparo dos gestos, 

onde se inventa a própria neblina, barreira inibidora 
das coisas invisíveis que nos sepultam o amor. 
poderíamos acontecer porque, é essa a nossa vontade. 



 [palavras relacionadas]