exactamente no mesmo banco de jardim do diminuto rossio,
onde, há instantes, quando ainda havia sombra e ainda era
manhã, se sentava um jovem casal de excitados
apaixonados,
que trocavam múltiplos afectos, como se quisessem
fundir-se
num único corpo, está, agora, um homem que abandonou o
seu
corpo único, excessivamente vestido, deitado ao sol
abrasador.
calça uns sapatos impecavelmente pretos e engraxados,
sobre umas meias de um negro muito enxovalhado. veste
calças, com indícios de vinco, outrora, certamente,
imaculado,
num tom creme muito escuro, talvez, aparentemente, mais
escuro, pela generosa porção de sujidade acumulada que,
em grandes extensões, se transformou em luzidias ilhas
gordurosas, sujeitas por um cinto preto de fivela reluzente,
como um cromado impecavelmente limpo; camisola amarela,
copiosamente encardida, que se sobrepõe a uma outra de
tom
azul claro, muito vivo, rematadas por um casaco de meia
estação, que terá visto todas as estações do ano, várias
vezes,
de cor verde, muito desbotada. cor protegida, ainda
assim,
pela mesma substância luzidia que se vê nas calças.
da cabeça caiu um boné cor-de-laranja, novo e limpo,
na aparência, tornando visível o pouco, e certamente
teimoso,
cabelo grisalho. um conjunto peculiar, numa aura rosa.
a porção visível de pele – rosto, mãos e parte do crânio
–
apresentam um tom extraordinária e invulgarmente
encarnado.
antes de se abandonar, assim, guardou, num misterioso
cuidado,
debaixo do banco, um vulgar saco de plástico, com alças,
de cor
verde, com roupa dentro. roupa merecedora da protecção
de um pouco de sombra e de possíveis mãos alheias.
vou em seu auxílio, contra a corrente dos que passavam
indiferentes. protejo-lhe a cabeça, com o boné que caíra,
e improviso uma almofada, com o saco de plástico verde
que contém roupa, enquanto lhe pergunto, insistentemente,
se está bem, se precisa de ajuda, tocando-lhe, gentil
e simultaneamente, para que regressasse ao seu corpo
abandonado. e ele regressa, a espaços, imperturbável.
por momentos, penso e sinto que ele é um possível eu,
que me chega do futuro próximo e próximo do ideal
de existência de poeta supremo, aquele que já não
necessita do próprio corpo para ser e ser,
sumptuosamente,
uma essência metafísica. nisto, o homem, responde-me
numa estranha língua, desprovida de qualquer sentimento
e desacompanhada de movimentos. talvez a língua exacta,
necessária e merecida, para os que fazem perguntas
tontas,
não sei se em agradecimento ou se me pede, amavelmente,
que me afaste. afinal, ainda não se paga para se
entregar,
assim, o corpo ao sol e a ocupação de um banco de jardim.
afasto-me, atenta e relutantemente, e ali permanece, o
homem.
passam horas e passa o sol. enquanto houve sol, sentava-se,
pontualmente, indiferente a tudo o que o rodeava, muito
longe ou demasiadamente perto de si. e dessa mesma forma
partiu, pelo seu próprio pé, erecto e sem hesitações.
deixou
para trás a sombra, à qual se juntou a sombra da árvore
e a sombra de um país e de uma grande alucinação política,
daquelas alucinações que são compostas por um conjunto
de múltiplos delírios, que se alimentam, naturalmente,
com o dinheiro que o povo há-de dar com um sorriso
absorto, sob qualquer pretexto. nesse mesmo banco
de jardim, há-de sentar-se a jovem que passeia o cão
ao crepúsculo do verão, à hora dos telejornais, como se,
dessa forma, se pudesse fugir às, ou aplacar as, desgraças
do mundo. eu sigo para onde se consegue alcançar um
horizonte onde, quanto mais me afasto de mim, mais
de mim me aproximo, acreditando que vale a pena.