sexta-feira, 5 de agosto de 2016

ao sol


aveiro | portugal



exactamente no mesmo banco de jardim do diminuto rossio, 
onde, há instantes, quando ainda havia sombra e ainda era 
manhã, se sentava um jovem casal de excitados apaixonados, 
que trocavam múltiplos afectos, como se quisessem fundir-se 
num único corpo, está, agora, um homem que abandonou o seu 
corpo único, excessivamente vestido, deitado ao sol abrasador. 
calça uns sapatos impecavelmente pretos e engraxados, 
sobre umas meias de um negro muito enxovalhado. veste 
calças, com indícios de vinco, outrora, certamente, imaculado, 
num tom creme muito escuro, talvez, aparentemente, mais 
escuro, pela generosa porção de sujidade acumulada que, 
em grandes extensões, se transformou em luzidias ilhas 
gordurosas, sujeitas por um cinto preto de fivela reluzente, 
como um cromado impecavelmente limpo; camisola amarela, 
copiosamente encardida, que se sobrepõe a uma outra de tom 
azul claro, muito vivo, rematadas por um casaco de meia 
estação, que terá visto todas as estações do ano, várias vezes, 
de cor verde, muito desbotada. cor protegida, ainda assim, 
pela mesma substância luzidia que se vê nas calças. 
da cabeça caiu um boné cor-de-laranja, novo e limpo, 
na aparência, tornando visível o pouco, e certamente teimoso, 
cabelo grisalho. um conjunto peculiar, numa aura rosa. 
a porção visível de pele – rosto, mãos e parte do crânio – 
apresentam um tom extraordinária e invulgarmente encarnado. 
antes de se abandonar, assim, guardou, num misterioso cuidado, 
debaixo do banco, um vulgar saco de plástico, com alças, de cor 
verde, com roupa dentro. roupa merecedora da protecção 
de um pouco de sombra e de possíveis mãos alheias. 

vou em seu auxílio, contra a corrente dos que passavam 
indiferentes. protejo-lhe a cabeça, com o boné que caíra, 
e improviso uma almofada, com o saco de plástico verde 
que contém roupa, enquanto lhe pergunto, insistentemente, 
se está bem, se precisa de ajuda, tocando-lhe, gentil 
e simultaneamente, para que regressasse ao seu corpo 
abandonado. e ele regressa, a espaços, imperturbável. 
por momentos, penso e sinto que ele é um possível eu, 
que me chega do futuro próximo e próximo do ideal 
de existência de poeta supremo, aquele que já não 
necessita do próprio corpo para ser e ser, sumptuosamente, 
uma essência metafísica. nisto, o homem, responde-me 
numa estranha língua, desprovida de qualquer sentimento 
e desacompanhada de movimentos. talvez a língua exacta, 
necessária e merecida, para os que fazem perguntas tontas, 
não sei se em agradecimento ou se me pede, amavelmente, 
que me afaste. afinal, ainda não se paga para se entregar, 
assim, o corpo ao sol e a ocupação de um banco de jardim. 

afasto-me, atenta e relutantemente, e ali permanece, o homem. 
passam horas e passa o sol. enquanto houve sol, sentava-se, 
pontualmente, indiferente a tudo o que o rodeava, muito 
longe ou demasiadamente perto de si. e dessa mesma forma 
partiu, pelo seu próprio pé, erecto e sem hesitações. deixou 
para trás a sombra, à qual se juntou a sombra da árvore 
e a sombra de um país e de uma grande alucinação política, 
daquelas alucinações que são compostas por um conjunto 
de múltiplos delírios, que se alimentam, naturalmente, 
com o dinheiro que o povo há-de dar com um sorriso 
absorto, sob qualquer pretexto. nesse mesmo banco 
de jardim, há-de sentar-se a jovem que passeia o cão 
ao crepúsculo do verão, à hora dos telejornais, como se, 
dessa forma, se pudesse fugir às, ou aplacar as, desgraças 
do mundo. eu sigo para onde se consegue alcançar um 
horizonte onde, quanto mais me afasto de mim, mais 
de mim me aproximo, acreditando que vale a pena. 



 [elipse]



2 comentários:

  1. Longe dos outros, e perto de si... assim é a solidão de cada um...
    Mais sentida por uns, por força das circunstâncias da vida...
    Um poema mais denso, que o habitual... mas não será um tema que se consiga abordar de uma forma leve... Pelo que gostei imenso desta variante...
    Só agora passando por aqui, por estes dias, em que ando ultimando tudo para ir de férias...
    Se for o caso, também te desejo umas óptimas férias, repletas de bons momentos, muitas fotos, e muita inspiração... estando eu a contar voltar aos blogues, lá para Setembro...
    Até lá, então... Beijinhos!
    Tudo de bom!
    Ana

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