segunda-feira, 19 de setembro de 2011

[Em pouco tempo, ou não…] V – Searas e cardais


     Searas e cardais


     A admiração e surpresa fundamentaram-se na constatação da existência ou na crença desta. Este é o caso da existência de uma paz aparente, ainda que de curta duração. «Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas», é bem verdade, e a natureza pura, como os sentimentos genuínos, regenera-se rápida e assombrosamente, em função e na proporção dos estragos.


     A talho de foice, o controlo não dorme, mesmo quando está do outro lado e, nomeadamente, longe dos factos, sem âmbito e sem propósito. Quando o jugo não vence uma questiúncula, inventa uma tragédia. A opressão nega vítimas, pois, alegadamente, estas fazem parte da causa e simultaneamente do efeito, são o processo indiviso: o sistema. É assim num ambiente totalitário, seja ele o império; o estado; a chefia; e, até, a amiúde, a família, entre outros.


     O espantalho permanece de braços abertos, desde que construído de forma sólida e resistente a acção dos agentes externos. Todo lhe é indiferente e todo ele é perfeito, desde que os materiais que o agregam não meditem ou está característica seja inibida ou condicionada e acondicionada. A verdade relativa é uma disciplina espantosa. A manipulação dos conceitos e dos factos, a omissão, e a conversão em transgressão de tudo aquilo que bem se entende, deixa pouco espaço de progressão; pouca margem para expandir; pouco caminho para andar.


     Sabia que era importante mas, já não se recordava da mensagem, nem sequer da língua ou das palavras, que a cobra branca proferiu junto da árvore que brotava água, como uma fonte, a muitos centímetros do chão. Crê que a árvore era um carvalho, mas já não tem a certeza, e sabe tratar-se de um assunto de importância vital, mas nunca o fixou.


     Já passaram tantas luas, tantas estações, chuvas e sóis, mas guarda, bem vivas, as imagens daquele alvor quente e mate da serpente, e da transparência cristalina da água; guarda as sensações de frescura, de sustento e de higienização do líquido e a sensação de autoridade respeitável e, simultaneamente, de dignidade e serenidade, desconhece se contrafeitos, do ofídio. Guarda tanto, e quanto, um espantalho pode guardar.


     O local situava-se numa pequena elevação, contudo, o ponto mais alto das imediações, e era cercado por um pousio. Recorda-se do caminho tortuoso, e, ao mesmo tempo, tão simples, para chegar ao local que nunca mais viu e nunca mais encontrou. Talvez o tenham destruído. A sua condição não permitiria que o local fosse muito distante. Está convencido de que é, agora, um eucaliptal, o eucaliptal em frente, onde as figuras e as sombras se pavoneiam mutuamente. Políticas que imitam árvores exuberantes, mas que sugam e inquinam as nascentes, destruindo a fauna e a flora autóctone. Relembra a enorme extensão de pousio de aparência viçosa, constituído (pejado) por pequenas cobras semi-erguidas e em vários tons de verde, que imitavam a erva que dança ao sabor do vento suave, e relembra o longo carreiro estreito, e não cotiado, que atravessava o pousio, a única passagem possível. Relembra a travessia, um acto de bravura no universo dos espantalhos, mas relembra-a como um acto modesto e de reverência para com a natureza das coisas simples e genuínas.


     Havia um cemitério próximo do local, onde os mortos permaneciam em silêncio. Um daqueles cemitérios distantes das povoações, com uns muros que pareciam fazer parte da própria terra, apenas erguida, enrugada, seca e estéril. Agora, ele sabe que o silêncio total era a única forma de reter a informação. Para além do óbvio, era requerido o silêncio dos pensamentos, dos sentimentos, dos sentidos, mas os seus afectos ribombavam e troavam na harmonia própria dos grandes tumultos.


     Hoje, como ontem, o espantalho acordou com pouquíssima vontade para entender a dualidade de critérios do julgamento vicioso. Anteontem estava empenhado em perseverar, possuía essa paciência. Não sabe como estará amanhã. Seria bem mais fácil, talvez, até, para ele, se vivesse num invólucro com luz própria e sem conexões compatíveis com o exterior a não ser uma única interface proprietária, conciliável com a deliberação, vontade e arbítrio da suposta soberania: uma redoma, talvez, preferencialmente, opaca, de dentro para fora, e de panorâmica moldável e regularizada. Mas nem todos seriam felizes, continuaria a não ser perfeito, pois a coordenação de movimentos e a modelação e articulação de palavras, serviços ao dispor de uns, não seriam toleráveis para outros.


     Não deixa de ser admirável quem diz não ter problemas com aquilo que não usa, ainda que dê a entender que o frui.


     O espantalho tem saudades dos que julgam saber como se sente; de escrever como se não existisse amanhã; de conviver como se isso fosse permissível.



S. Bernardo, 13 de Julho de 2010.



2 comentários:

  1. " O espantalho tem saudades dos que julgam saber como se sente; de escrever como se não existisse amanhã; de conviver como se isso fosse permissível."   Ok, agora fizeste-me sentir uma verdadeira espantalha!

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  2. aos poucos vimos a destruição da natureza , pessoas supostamente sábias, intelectuais que podem acabar com o bem mais precioso que temos a Terra a nossa casa.
    beijinhos

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