sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Breviário [XI]

     Por vezes, não responder não é, simplesmente, ficar calado, desrespeito, falta de educação… Por vezes, não responder é, elaboradamente, a tentativa de preservar a lucidez, o respeito, a educação e a própria paz…

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Só para dizer [VIII]:



     Querido espelho, pois bem, voltei! Sem prodígio, é certo, como é certo, também, e bem podes constatar, que continuo cansado e a receber muitos mimos. Cheguei a casa e o cão rosnou qualquer coisa que não entendi. O gato rosnou para o cão, para mim e para o ouriço que lhe vai furtar a ração. Creio que a crise também deverá ter chegado ao mundo dos animais, nomeadamente, ao mundo dos ouriços, e eu aqui, a falar contigo…


     Imagens de ligar e desligar.




Rosnar - emitir, qualquer animal, especialmente o cão, um ruído surdo e ameaçador
(Porto Editora)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Breviário [X]


     Não posso ficar aqui. Esta margem é o meu custo, espelha o teu lucro; não é a orla serena, tranquila, e apaziguante que tu pintas.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Movimento de torno


Movimento de torno

O retorno torna a volta imperfeita perfeita,
Num passo pesado com passado,
Sem conta, sem medida e cego espreita
Na grande avenida da vida estreita,
Ruela multicolor, escura e de outro lado,
Sobre a luz que permanece desfeita
Numa verdade contrafeita.
Um amor e não amado,
Num jogo claro, inseguro e cinza, condenado,
De uma rua que nunca foi direita.
Recta da vida que se deita,
Não dorme, não descansa, 
Dardo lança,
E fica um, só, sonho que parte desfeiteado!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

E hoje... (VI)


     ... O tempo passou e com ele veio o esquecimento intermitente.

     As discussões são compostas, muitas vezes, por várias discórdias enevoadas, são de duração indeterminada e, normalmente, não tem uma conclusão razoável.


     Fogo-de-artifício.

     Nada de novo.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A tal vez!


A tal vez!

Talvez!
Deixa um espaço incerto,
Um longe, tão perto,
E eu, que já me julgava desperto,
Deixo-me cair, uma e outra vez.
Ando, sem andar, enquanto falo, sem falar,
E levanto-me sem conta e certo
De que se perde a sensatez
Por cada som ou silêncio aberto.

Não choro,
Não riu
E se por certo demoro
Indiferente à indiferença,
Não é, tão próximo, pelo frio,
É, de longe, por estar cheio de um vazio
E a falta e o excesso de uma vontade imensa,
Maré que danço arredio
E com permissão peço licença.

Faz-me bem e faz-me falta,
Não tenho e procurei no sítio errado,
O mar, um mar fechado,
E um céu do mesmo modo, que salta.

Nariz, 31 de Janeiro de 2011

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Paiol amorfo



Tenho uma série de bombas guardadas,
Num paiol que assaltam amiúde.
Por vezes, talvez por falta de coragem ou de vontade,
Deixo as lágrimas inundarem-me, desalmadas,
Ocultas num sorriso que a alguns ilude.



21 de Abril de 2009

Breviário [VIII]




     … Repito-me!


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Miríades



Miríades

O novo espelho da imagem imita a dobra
Que reluz, do passado, a eterna demência
Do primogénito agravado, elevado à potência,
De um título mais importante do que a obra;
De um rótulo mais eficaz do que o contido;
De um cabeçalho que diz mais do que o texto.
Sentimentos de um exemplar deflectido
Na assunção de um fundamento sem pretexto.

Formas líquidas e cristalinas de um amor ineficaz.
Primeiro pé-de-cantiga reminiscente, de lugar-comum,
Tão sério, tão intenso, mas tão brincalhão e tão fugaz.
Fragmentos de bem-querer sem fundamento,
Sobranceiro à chama, embebido pelo rocio
Num clarão arrebatado de um festivo cio.
Do nada surgiu a vontade vazia e o pressentimento.
Por muito pouco, a alma, espessa, já existia
Na estranheza das fragas de uma sindicância.
O todo, o quase e o nada são uma heresia
Perante a indivisível incompatibilidade e ânsia.

Nariz, 17 de Junho de 2010.

Outras ruas



Outras ruas

Entretanto, corri as outras ruas noutro sentido.
Descontente, remediadamente, parti de novo e sem ti.
Sabe-lo bem porque, sem o esconder, a correr sai,
Não foi importunado, a contragosto ou aborrecido.

Simplesmente, posso não amanhecer contigo,
Amanheço, muito embora, com a saudade de te ter.
Sei que, sobre ti e sobre tudo, tenho muito para aprender,
Mas estar longe, afastado, já é suficiente castigo.

Cada vez mais, experimento e sinto a tua ausência.
Como me faz falta a tua indiferença que, um dia,
Me vai carregar mais do que o aceitável para a paciência.

Mas agora, hoje, neste momento, estou possuído pela valentia
De quem ama sem passado, sem sequela; em consciência.
Albergo a velha trama, fadada, encantada, melosa e esguia.

Albergaria-A-Velha, 14 de Janeiro de 2001.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

[Em pouco tempo, ou não…] V – Searas e cardais


     Searas e cardais


     A admiração e surpresa fundamentaram-se na constatação da existência ou na crença desta. Este é o caso da existência de uma paz aparente, ainda que de curta duração. «Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas», é bem verdade, e a natureza pura, como os sentimentos genuínos, regenera-se rápida e assombrosamente, em função e na proporção dos estragos.


     A talho de foice, o controlo não dorme, mesmo quando está do outro lado e, nomeadamente, longe dos factos, sem âmbito e sem propósito. Quando o jugo não vence uma questiúncula, inventa uma tragédia. A opressão nega vítimas, pois, alegadamente, estas fazem parte da causa e simultaneamente do efeito, são o processo indiviso: o sistema. É assim num ambiente totalitário, seja ele o império; o estado; a chefia; e, até, a amiúde, a família, entre outros.


     O espantalho permanece de braços abertos, desde que construído de forma sólida e resistente a acção dos agentes externos. Todo lhe é indiferente e todo ele é perfeito, desde que os materiais que o agregam não meditem ou está característica seja inibida ou condicionada e acondicionada. A verdade relativa é uma disciplina espantosa. A manipulação dos conceitos e dos factos, a omissão, e a conversão em transgressão de tudo aquilo que bem se entende, deixa pouco espaço de progressão; pouca margem para expandir; pouco caminho para andar.


     Sabia que era importante mas, já não se recordava da mensagem, nem sequer da língua ou das palavras, que a cobra branca proferiu junto da árvore que brotava água, como uma fonte, a muitos centímetros do chão. Crê que a árvore era um carvalho, mas já não tem a certeza, e sabe tratar-se de um assunto de importância vital, mas nunca o fixou.


     Já passaram tantas luas, tantas estações, chuvas e sóis, mas guarda, bem vivas, as imagens daquele alvor quente e mate da serpente, e da transparência cristalina da água; guarda as sensações de frescura, de sustento e de higienização do líquido e a sensação de autoridade respeitável e, simultaneamente, de dignidade e serenidade, desconhece se contrafeitos, do ofídio. Guarda tanto, e quanto, um espantalho pode guardar.


     O local situava-se numa pequena elevação, contudo, o ponto mais alto das imediações, e era cercado por um pousio. Recorda-se do caminho tortuoso, e, ao mesmo tempo, tão simples, para chegar ao local que nunca mais viu e nunca mais encontrou. Talvez o tenham destruído. A sua condição não permitiria que o local fosse muito distante. Está convencido de que é, agora, um eucaliptal, o eucaliptal em frente, onde as figuras e as sombras se pavoneiam mutuamente. Políticas que imitam árvores exuberantes, mas que sugam e inquinam as nascentes, destruindo a fauna e a flora autóctone. Relembra a enorme extensão de pousio de aparência viçosa, constituído (pejado) por pequenas cobras semi-erguidas e em vários tons de verde, que imitavam a erva que dança ao sabor do vento suave, e relembra o longo carreiro estreito, e não cotiado, que atravessava o pousio, a única passagem possível. Relembra a travessia, um acto de bravura no universo dos espantalhos, mas relembra-a como um acto modesto e de reverência para com a natureza das coisas simples e genuínas.


     Havia um cemitério próximo do local, onde os mortos permaneciam em silêncio. Um daqueles cemitérios distantes das povoações, com uns muros que pareciam fazer parte da própria terra, apenas erguida, enrugada, seca e estéril. Agora, ele sabe que o silêncio total era a única forma de reter a informação. Para além do óbvio, era requerido o silêncio dos pensamentos, dos sentimentos, dos sentidos, mas os seus afectos ribombavam e troavam na harmonia própria dos grandes tumultos.


     Hoje, como ontem, o espantalho acordou com pouquíssima vontade para entender a dualidade de critérios do julgamento vicioso. Anteontem estava empenhado em perseverar, possuía essa paciência. Não sabe como estará amanhã. Seria bem mais fácil, talvez, até, para ele, se vivesse num invólucro com luz própria e sem conexões compatíveis com o exterior a não ser uma única interface proprietária, conciliável com a deliberação, vontade e arbítrio da suposta soberania: uma redoma, talvez, preferencialmente, opaca, de dentro para fora, e de panorâmica moldável e regularizada. Mas nem todos seriam felizes, continuaria a não ser perfeito, pois a coordenação de movimentos e a modelação e articulação de palavras, serviços ao dispor de uns, não seriam toleráveis para outros.


     Não deixa de ser admirável quem diz não ter problemas com aquilo que não usa, ainda que dê a entender que o frui.


     O espantalho tem saudades dos que julgam saber como se sente; de escrever como se não existisse amanhã; de conviver como se isso fosse permissível.



S. Bernardo, 13 de Julho de 2010.



domingo, 18 de setembro de 2011

Breviário [VII]



     Por vezes não queremos a cura, queremos fazer parte da doença, quando não queremos ser a própria doença.

sábado, 17 de setembro de 2011

[Em pouco tempo, ou não…] IV – O caminho de éter

    O caminho de éter

     Era uma vez um mero caminho de éter, junção de uma nano distância entre colossos de sentimentos feridos. Uma ligação do intervalo hiato de união e, simultaneamente, vasta extensão de discórdia. Não era atalho, não havia vontade para que o fosse. Culpava-se quase tudo e, por fim, o desejo, que não era. Era tão fácil culpar quem não estava ou quem não existia; o que é invisível. É tão fácil, por vezes, mentir. Entretanto, o mero caminho, curto, de éter, não foi mantido. Inventaram-se, por sua vez, pontes, desproporcionadas, diminutas ou discretas, e outras formas de chegar, nem todas bem aceites, de A a B, de B a B, de B a A ou de A a A, para juntar colossos de sentimentos feridos, com diversos materiais e aderências. Mas, todas as obras exigiam e originavam mais buracos, prontamente fechados, alguns, outros não, é certo, mas certo era, também, que os orifícios moldavam e modificavam os colossos de sentimentos feridos. Até que um dia, os colossos de sentimentos feridos, de tão próximo que estavam, e no seu tempo, conseguiram aspirar os seus cheiros. Conseguiram cheirar-se. Uns, não se reconhecendo pelo odor, afastaram-se; outros, identificando-se pelo, e com o, aroma, uniram-se. Todos viveram, ou deveriam ter vivido, felizes para sempre. Dentro da realidade, claro está!

     De quando em vez, de longe a longe, por vezes de bem perto, continuam a ouvir-se histórias de felicidade, na união e na separação, por um mero caminho de éter. Certo é, pois, que continuaram, continuam, e continuarão, a existir caminhos de éter e uma diversidade de ligações, uniões, substituições, suposições e, até, feitiçarias e magias, para juntar colossos de sentimentos feridos. Não importa de onde, nem com quem, por quanto tempo, o tipo ou o género, o importante é, por alguma vez, por algum momento, ser, verdadeira e livremente, feliz, durante a jornada.

     O amor é um caminho de éter que só existe por força de muita manutenção. É tão verdade como um filósofo poder ser poeta e/ou um poeta poder ser filósofo.

  

Só para dizer [VI]:



     Bom fim-de-semana, com todas as letras e traços!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

[Em pouco tempo, ou não…] III – Em segredo e condensação




Vasily Perov Blessed One




     Em segredo e condensação



     «Acordo com a sensação de que sempre estive aqui, exposto à intempérie, mas como se estivesse, permanentemente, preparado, disposto e apto a receber qualquer ser: De braços abertos.


     Há uma eternidade que aqui estou e existo, sem pender os braços.


     Atribuíram-me uma função relevante. Sou, humildemente, importante, de grande valor e utilidade para o encargo concedido. Mas, quase todos, de qualquer espécie, diversos, indistintos, zombam de mim: Os que andam; os que julgam andar; os que se arrastam; os que permanecem imóveis; e, igualmente, os que me temem. Os da mesma aparência, os meus semelhantes. Os que se assumem e os dissimulados. Os alheados achincalham-me, também e ainda, com a indiferença, de igual modo que os gabirus. E, de braços abertos, muito para além das bicadas que recebo, afugento alguns pássaros mais distraídos ou prudentes. Pelo menos, estou convencido disso; sinto que é assim. Porém, sinto-me membro de uma comunidade e, por outro lado, como se fosse uma comunidade: A própria comunidade.


     Também sou um desmazelo personificado, mas não há dor, nem pode haver. Tenho esse conhecimento; essa consciência. Não existe pressa, mobilidade ou frio. Receio o fogo e, apesar de tudo, sou feliz! Preso a uma estaca, cravada no chão, existo leve e como que vazio, sempre pronto e presente. O meu abraço, de braços guarnecidos pela consistência de uma vara, não consegue abraçar ninguém. O meu cabelo é constituído por palha, a mesma matéria que parece sobrar do enchimento da minha cabeça; o meu corpo e entranhas são de palha, também. Carrego umas vestes amarrotadas, desbotadas, delidas, fora de moda; calçado antigo, velho, estafado, de pouco préstimo. Ainda assim, porque me desmantelam?


     Agora, extraem-me o recheio, que deitam fora; esvaziam-me; esventram-me. Espalham o meu pequeno e o meu vastíssimo mundo, a minha comodidade e a comunidade, que deixa de ser, que deixa de existir. Dobram-me a vestimenta, que também sou, que faz parte de mim, e guardam-me e guardam, e fecham, neste sítio escuro, que não recordo. E, e, e… E.


     Recordo-me que não sou daqui. É uma vaga ideia que se converte em certeza. Nem sempre fui assim. Relembro o meu aspecto anterior, numa outra eternidade: Cara caiada de branco mate; nariz postiço em forma de bola encarnada e reluzente; lábios grossos, rubros, mas espalmados. Mãos enluvadas, brancas. Roupa colorida, simultaneamente larga e apertada: Camisa com um grande colarinho, mangas com folhos espampanantes, botões grandes, de vários formatos e cores diversas; calças curtas mas larguíssimas nas ancas e coxas, afuniladas e apertadas bem acima dos tornozelos. Sapatos pretos, enormes. Meias garridas, de pares diferentes.


     É curioso como alguns pormenores, as diferenças, as particularidades, como as cores, as crenças, as convicções, a cultura, entre outras, nos afastam, desigualam e isolam dos nossos semelhantes, transformando-nos em seres inadequados, descartáveis, inconvenientes, de outra espécie. Apartados. Por vezes não queremos a cura, queremos fazer parte da doença, quando não queremos ser a própria doença. Por vezes não queremos a solução, queremos fazer parte do problema, quando não queremos ser a personificação do problema.


     Os meus gestos e atitudes, desajeitados, desastrados, despertam e arrancam gargalhadas aos que assistem. Tenho os risos dos outros gravados na minha intensa, consciente, duradoura e dura tristeza. Contudo, sem ódios, sem ressentimentos, guardo a felicidade de ter vivido e de viver. A alegria também se inventa.


     Não sei porque apupam, tão prontamente, as horas e os momentos menos bons. O que resta, para além do muito ou pouco dinheiro que pagam pela satisfação, é o carinho, ou a falta dele, que fica e perdura nos momentos de solidão; é um alimento para o amor-próprio.


     Se é verdade que nem todos os sinais emitem vida, também não deixa de ser verdade que nem todas as vidas emitem sinais.


     Revivo um certo balouçar, uma oscilação familiar, no marulhar dos meus sentidos, dos meus sentimentos e das minhas memórias. Tenho outra eternidade. A eternidade das espumas, das brisas, do vai-não-vai, do vai e vem, das marés, das ondas, das correntes, das tempestades e das bonanças. Venho, com ou sem calmarias, tantas vezes, à praia, para contemplar o mar, e nela fico ancorado. No mar procuro encontrar-me e pescar as respostas para perguntas intermináveis e histórias sem fim. Encontro tanta paz e união neste manancial de agitação e polvorosa, que também sabe ser sereno e onde as palavras também se afogam. A pescaria ocorre em mim e por meu intermédio. Fruo, apenas, do milagre da vida, não encontro outros milagres.


     Abraço a consistência de um sonho eminente, sempre perto do fio de terra, que é de areia, para não perder o pé. Um querubim estouvado derramou uma pequena porção do conteúdo da taça dos afectos e tinge o mar com alguns salpicos de alegria frugal mas firme, balsâmica e aromática. A maresia contagia-me positivamente. Marejado, espalho vocábulos, sem voz, sem dicção, sem caligrafia, apenas com a imaginação. Termos, descrentes de sortes, de sinas, de divindades, mas nunca infiéis.


     Coexiste, na praia, uma grande diversidade em fraternidade, sem a grei; com Sol ou sem o Sol; com chuva e sem chuva; sempre com algum humor. Há tantas imagens e tantos auspícios neste mesmo pedaço de vista e de horizonte, nesta perspectiva que se multiplica. Há tanta matéria com tanto de disciplina como com falta dela.


     Em matéria de identidades, de “eus”, não sou único. Palhaço, humano, espantalho…: Diverso.


     Vejo-me a utilizar uma licença especial de usufruto e tratamento em liberdade do manejar, do modelar, do manipular, da matéria-prima, o elemento básico: A palavra. Permito-me o luxo, ou a pretensão ou presunção, de ser um poeta, mesmo quando não o sou; quando escrevo e quando não escrevo; quando acredito e quando duvido; quando respiro e quando, simplesmente e em simplicidade, vivo.


     Avivam-se-me outras lembranças. Nem sei bem se me desconheço, se me desentendo e se a oferta existiu, tão separada do todo, tão aparada e retocada. O meu retrato em formas que não são as minhas e com sombras vestidas.


     Em boa verdade, enquanto não for aceite, a dádiva permanece pertença do oferente. Não aceitei a tua conclusão, a tua injúria, a tua raiva. A crueldade é tua.


     Em paz, com modéstia e apesar de tudo, ofereci-te, curvando-me, a minha cabeça. Cortaste-a em silêncio, com o silêncio, pelo desprezo e em desprezo, para além do alarido. Agora, pairo e vejo o meu corpo decapitado, estendido no chão. Já o tinha abandonado antes, voluntariamente, não é uma circunstância nova para mim, mas voltava para ele, rapidamente, porque era o meu abrigo, a minha casa, a minha estrutura; era eu e não me queria perder. Hoje, não sei o que me vai acontecer. É estranho olhar para o próprio corpo, inerte, e saber, vivamente, que não é, de todo, funcional, operante. Devo notar que não deixa de ser curioso este sentimento de ser hospedeiro e hóspede simultaneamente. Sem esta ligação, fora do meu corpo, sou muito mais rápido, ágil, mas sinto-me vulnerável. Estou exposto. Fui expulso. O que sou?


     Um fogo-fátuo, principal ou figurado; um peregrino na civilização. Presencio e represento. Sou um actor e um espectador, numa realização e numa projecção metafórica de um lanço de vida. Afinal, a eternidade não é assim tão perpétua.


     Algumas partes do meu corpo esqueceram-se de morrer. Não sabem morrer. Não tem como saber que, agora, é inútil o seu funcionamento.


     Assim, não só estou, como sou, diferente. Sou eu, mas não sou, exactamente, eu. Os pensamentos fluem de outra forma. Tenho o conhecimento das experiências anteriores, que não são lembranças, recordações, fazem parte de mim: Estão. Tudo é e está num tempo, e tem uma duração, que não se equipara a durabilidade apercebida no outro estado, no do corpo vivo que agora jaz. Eu sou, agora, o todo e tudo, daquilo que eu era, sou e continuo a ser.


     Realizo, agora, que sou da terra, do fogo, do ar e do mar. Sou de todos, estou em tudo, e sou tão pouco, tão imperfeito. Não sou propriamente de ninguém e não sou ubíquo. Observo, dou-me a observar. Não sei se me mostram máscaras, a minha, na realidade, nunca existiu.


     O tacto é mais profundo e definido, mas não é exactamente o tacto que conheci. Não sei como agarrar, não consigo, não é, exactamente, agarrar. O odor é mais intenso e não o é. Vejo as formas com outra dimensão e as cores e os seus sons e as cores dos sons – que bela melodia, que bela visão. São e não são as mesmas coisas. As temperaturas não são sensações qualificáveis, são gradientes de uma diferença que não separa. São diferenças de sensibilidade que não consigo descrever, não estão contidas nas palavras conhecidas, mas cabem nas palavras inventadas. Ainda me sinto muito agarrado à vida que já não tenho e tudo isto me confunde e funde. Todos os sentimentos são mais amplos, abrangentes, plenos e absolutos. Ricos. Tudo é abundante e imenso; novo e tão antigo.


     Podias ter-me concedido a liberdade, desembaraçando-me. Podias ter-me perdoado e devolvido a verdade. Tinhas, talvez, o dever e, seguramente, esse direito, esse poder. Contudo, eu não te quero mal, não guardo rancor, não te censuro. Não te condeno. És quem mais vai sofrer e sofres já, sem o reconhecer. É o teu próprio silêncio que te tortura. É a tua justificação que te castiga. A dor é tua e és tu, na frieza da tua solidão.


     Primeiro, todos me vão apontar, eu sei. Já apontam, veladamente, sobre o que eu era, o que deixava de ser e o que serei. Fantasias. Coisas falsas, ou verdades e verdades, e outras meias verdades. Meias-medidas, meias-palavras. Falam em pequenos grupos, em crescendo, até se transformarem num único e grande grupo: Uma irmandade. Tu participas e sabes. Desconhecem que eu sei. Ajudas a avultar e a exagerar os factos. És, agora, a vítima e convenceste-te disso. Convertes a dor do remorso na dor do ofendido.


     Depois, outros, dissidentes, defender-me-ão. Já defendem, sem qualquer crédito. Falam em pequeníssimos grupos, sobre o que eu deixava de ser, sobre o que queria ser e sobre aquilo que viam que eu era, mas não era, e o que era na realidade. Concepções. Umas mentiras piedosas, umas verdades formais e umas certezas, que arreganham e aviltam a tua imaculada postura e integra moralidade. Redobram as razões, que já não existiam, e, ao mesmo tempo, fendem-nas. A tua dor, lamento, aumenta.


     Não sei qual das facções vai vencer, de nada me serve ou vale esse conhecimento. Talvez seja útil, para quem fica, sabendo que não fui exclusivamente, e sempre, inocente.


     Noto uma hesitação que monta a dúvida, num ápice da eternidade que descobri ser efémera. Não sei se deva retirar-me. Se ficar por ali, serei uma espécie de fantasma; uma alma penada. Não me vão querer ver, nem poderão. Ou não.


     As unhas e o pouco cabelo aparentam crescer dentro da caixa escura, mas isso é ilusão. A corrupção, sempre a corrupção e até na morte, embora e felizmente outra, tratará de repor a verdade. Pouquíssimas pessoas assistem à solenidade da desagregação, ainda invisível, do meu corpo e da sua entrega à terra, e os que assistem estão tristes. Não deve ser tristeza, mas uma alegria. A verdadeira liberdade não pode nem deve ser triste.


     As pessoas ficam num lugar longínquo. Escrevo a minha história remota, enquanto a águia voa e o leão corre. A incrível bizarra história. Ou estória generosa?


     Dobrado e arrumado, consigo fazê-lo.


     Acordo com a sensação de que sempre estive aqui…»


  

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Fragmentos



     Emito e perpetuo um silêncio, não por falta de cortesia, não por desagrado, mas por não ter palavras que não pareçam banalidades, lugares-comuns, bajulação, e que exprimam simultaneamente a minha concordância e compreensão completa e absoluta. Lamentavelmente não poderá ver a minha expressão de felicidade e benignidade e não poderá sentir a minha aceitação por inevitável e fisicamente se encontrar tão longe e afectiva e mentalmente tão próximo.


     Os fragmentos do dia dissolvem-se na noite.

[Em pouco tempo, ou não…] II – Reflexos


     Reflexos


A partir de um espelho, no Abismo, há muito tempo.

     Imagina que, ontem ou anteontem, cheguei a escrever, como comentário, que estava do lado errado do espelho. Claro que apaguei a afirmação. Eu já não tenho a certeza de qual é o lado certo e correcto, mas parece que estou sempre enganado. Embora, muitas vezes, o lado errado seja o lado exemplar, perfeito e o lado do bem, eu penso que estou sempre do lado mau. Fiquei, apenas, pelo desencontro, não fui além disso. Só isso ficou escrito.

     Acredita que, já há muito tempo, comecei a fraquejar. Já fui além do ceder e da irritação, já perdi a razão. Por vezes convenço-me que tudo, mesmo tudo, é subjectivo e tento aceitar esse todo e tudo dessa forma, dentro da subjectividade. Reservo-me e fico quieto a ouvir o vento, ou, quando posso, as ondas. Contudo, muitas vezes não o penso assim. É difícil, para mim, assistir ao chorrilho de mentiras e dissimulações sem que a revolta me tolde a serenidade e me paralise a bondade. Os enganos e os desenganos cercam-me e encarnam naqueles que me rodeiam e que já deixei de conhecer, porém, reconheço-os.


     Vejo que a omissão parece ser libertadora, a salvação ou absolvição e, até, justificação para qualquer falta de escrúpulo. Vejo, e testemunho, o reflexo da supressão de uma passagem, ilegal para a união, que quase me passava despercebida. Agradeço-te a frontalidade e por me mostrares alguns detalhes, só assim consigo ver e saber.


     Estou cansado deste jogo aéreo e deste jogo rasteiro, pouco esclarecidos e trapalhões, com regras em constante mutação e desiguais entre iguais. Tenho piedade, dó, dos inocentes, aqueles que sofrem e sofrerão e os que virão a sofrer com o resultado destes atropelos. Lamento e lamentarei, se as forças me faltarem por completo e crescerem outras no seu lugar, mas será uma alegria para a sanidade e para a serenidade.


     O ano passado foi difícil, mas este ano é, normalmente, pior.


     Levo a peito o despeito. Abro o meu peito e o respeito. Sabes como me irritam a arrogância e a altivez dos que, sabendo-se errados e descobertos, continuam cheios de razão, impunes e de peito feito.


     Até breve, espelho!


  

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Breviário [VI]



     Uma contramão extrema quase me transformou num extremista.


   

Só para dizer [V]:



     Sinto-me tão longe quando estou perto de ti! 


  

[Em pouco tempo, ou não…] I – O Espantalho


     O Espantalho

     Ninguém preza e/ou ama o espantalho, o espanta-pardais. Ele cumpre a sua função, sem vida, e nada mais. Sem vida?

     No tempo da solidão, sou só eu. Grande, maior, e forte e pequeno, menor, e fraco. Posso ser a poesia, antiga ou reinventada. Posso escrever, e leio, estórias e outras histórias. Posso ficcionar, viajar e ser genuíno, sem deixar de ser. Posso espelhar ou absorver a realidade. Mas a realidade parece depender do ponto de vista, da perspectiva. Seria muito mais fácil e muito mais simples se a realidade se apresentasse sempre como é. A realidade deveria ser e mais nada.

     Admiro os palhaços! Por vezes sinto-me um ou como um palhaço, tenho que mostrar e demonstrar felicidade e só na solidão posso ser Eu. Não que me mascare, no tempo que sobeja para o convívio, e, embora goste de brincar e das palhaçadas, apenas tenho que sorrir e ajudar os outros a sorrir para viver bem em sociedade. Porque, poucos gostam da conversa pura, sem melindres e a escrita não completa, nem contém, a expressividade do rosto, a riqueza do, ou de um, olhar. Mas não sigo o rebanho, nem fico preso à estaca. Não me agremio num conjunto de acções dos Espantalhos e suas consequências, só porque é moda.

     Ainda que num gesto que me garante a reprovação dos meus pares, de braços abertos vos recebo, preservem-me a dignidade. Não me furtem o recheio, nem insistam na tentativa de me rechear com o que bem entendem, se bem me entendem.

     Que importa o nome ou a etiqueta?

  

terça-feira, 13 de setembro de 2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

De passagem



     O rosto. Um rosto familiar, latente, numa expressão que não consigo descrever. Consegui vislumbrar todo um vulto cansado no reflexo, enquanto lavava as mãos de uma parte do dia.


     De seguida, já só com imagens alheias, passou perto a vulgaridade de um despacho distraído, pairou no ar saturado de odores de iguarias e, por fim, desvaneceu-se pela chegada de outro motivo de meditação. Consegui sintetizar a minha observação. Anotei uma deslocação apressada num sentimento expresso e aclarei alguns sentidos enquanto me deslocava. Próximo, um pardal ardiloso procurava o sustento, para si e para os seus, que não se encontravam muito distantes. A ousadia, o sentido de oportunidade, o sentido prático numa cena tão ingénua e tão calculada.


     Dilui-me na passagem.

Breviário [IV]



     Vi indivíduos com ideias curtas a criticar indivíduos com cabelos compridos.


     

domingo, 11 de setembro de 2011

sábado, 10 de setembro de 2011

Metáfora


     Encontro-me a matar o tempo. Um curto-circuito num desabafo. As metáforas são um terreno fértil, por parte dos receptores e/ou dos emissores, na origem e/ou no destino, para a crítica jocosa, para o escárnio, para mal-entendidos. No entanto, gosto das metáforas. Gosto da sua astúcia e subtileza. Preocupa-me quando procede de um aprisionado, de um censurado, de um amordaçado.

     Não interessa se em letras de ouro ou por pessoas de letras grossas, entendo quem não compreende uma metáfora, assim como, entendo quem interpreta uma [metáfora] literalmente. A minha tolerância é uma enorme planície, com algumas, pequenas, elevações e, pequeno, depressões, é certo. Há dias mais amargos.

Breviário [II]



     O dia foi demasiadamente conciso e eu fui excessivamente longo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Instantâneo diferido



     Momentos. Revejo alguns negativos, tiras antigas de filme fotográfico, revelados mas não divulgados. As suas manchas ganham vida no meu cérebro, e crescem lembranças, momentos, histórias. A profundidade de campo, por vezes diminuta, revela novos incidentes ou confirma a profundidade e a elevação das recordações.


     Os pequenos espelhos transformam alguns retalhos de vida. Nivelam a sua importância para uma zona mais neutra e diluem-se numa diferença de cor e na presença da imobilidade. Outras fracções de existência, vistas por este prisma, agigantam-se ou diminuem.


     Crescem e afrouxam sorrisos; desaparecem, ou despontam, embaraços, vergonhas. Memórias.


     No fundo, revejo alguns positivos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Breviário [I]


     … Mais cartas de amor: Contas!

     (Sem rezas e embora repetitivo, ainda não encontrei uma [conta] que fosse repetida, o que poderia ser bom, mas, também, poderia ser um mau testemunho.

     Haja!)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

E hoje... (V)



     ... Desvio-me de alguns advérbios, dos absolutos e questionáveis: "sempre", "eternamente", "jamais", "nunca"...

sábado, 3 de setembro de 2011

Em modo de observação



     Uma mulher puxa, sem violência, uma criança pela mão, não porque esta, criança, não consiga acompanha-la, creio eu, mas, porque deixa para trás outros interesses ou outras vontades. Muitas vezes somos arrastados, ou deixamo-nos levar, ou queremos ser puxados: com alternativa, ou sem opção, ou alheados; por bondade, ou por poder, ou por distracção; por pessoas, ou por circunstâncias, ou pelo tempo, ou por vontades.


     Os cenários e as variáveis desses percursos podem complicar-se, multiplicar-se por diversas combinações. Não me apetece dissecar as idas na enxurrada ou contra a corrente, deixo o tema numa gaveta próxima. Quero absorver as cores, os movimentos, os odores, as sensações. Contemplação.


     Mais crianças seguem de mãos dadas, felizes, indiferentes ou contrariadas; em duetos ou em grupos. Por outro lado, por outros motivos, também há pares de jovens e/ou adultos que circulam de mãos dadas, possivelmente, por vontade de materializar a união; um simbolismo da caminhada conjunta, una, indivisível, de um só sentido; um estado de fusão. Indivíduos unidos sem distinção de género, raça e credo.


     É um ponto de partida e/ou de chegada.


     Haja paz!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

E hoje... (IV)



     ...Pergunto-me se estou feliz. Porque me perguntam se estou feliz?


     A dona aurora serenou a jornada nocturna: as espertinas, os sonhos, as dores. Não colheu alegrias.


     A matéria ainda não acordou, em definitivo, substância que consubstancia o estado com a aparência e a apresentação. Acresce o cinzento uniforme, que cobre o céu, e a humidade homogénea, que carrega o ar, e fundem e formatam o dia, que não é inferior por ser o segundo. Os regressos são, não apenas, viagens.


     Inspirar, contudo, e exalar, sobre tudo, o bem-querer. Há diligências e percursos a traçar, a trilhar e a libertar. Há o «deve» e o «haver». Há vida. Haja paciência!

Só para dizer [III]:

  
     Sinto-me devolvido, revolvido e vagamente enleado. Os actuais lugares-comuns são invulgares e antigos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"Banquinho" de meditação

   
     Enquanto espero por um novo imposto, Setembro deixou de ser um segredo.
  
     Sentado num banco, atrás do espelho, mais ausente do que escondido, enrolo os pergaminhos soltos da minha vida. Surpresas ou nem tanto: Contas.
  
     Contas para pagar, para contar, para referir, para rezar… Creio que tenho contas a mais no meu rosário. Um verdadeiro milagre de multiplicação, reprodução, ou apenas ciência das finanças.

Sequer

  
     Não encontro a forma, nem a fórmula. Recolho-me e encolho-me. É inútil forçar a natureza, esta mola, mole e teimosa.
  
     Hoje colho todos os ventos, os que, de facto, semeei e aqueles que dizem ter semeado. Permito-me ser flexível. Não pretendo acrescentar ódio e ira a quem vem. Por vezes sabe bem ser de outra têmpera, ainda que destemperada.

Conta à ordem

  
     Não me escondi, nem fingi desconhecer. Cumprimentei o contorno perdido e simulado num novo fato que espelha o formato sério de uma exposição que decorria nos corredores de um centro comercial excêntrico. Abriguei-me e contrai-me. De nada vale constranger, ainda que livremente, a natureza sujeita. A imagem logrou figurar o reflexo de uma metáfora e de uma ironia, ou de um conjunto de figuras de estilo numa falta de estilo.
  
     Se fosse apenas um espectador e não conhece-se a personagem, não deambularia por estas vielas escusadas e escusas. Não posso fingir a indiferença. Julguei pressentir um desprezo, que me é permeável, transparente e alheio.
  
     Recolhi a saudação caída. Segui pelo atalho que pretendia trilhar. Não há nada a acrescentar. Não quero analisar. Quero, isso sim, colorir um novo dia e abrir uma conta à ordem num banco de sorrisos.