quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

De um todo


O tempo, por vezes, é o contrário daquilo que aparenta ser, 
espraia-se sensível e adquire a forma imprecisa das raízes 
ávidas. Um tempo que nunca é suficiente, impossível de dizer, 
agarrado ao chão de sentidos e à praça de um momento, 
onde um punhado de si mesmo, no ar, parece um traço contínuo 
de fogo no horizonte, a equilibrar o céu e o tempo restante, 
sem, contudo, garantir o seu próprio equilíbrio ou tempo. 
Um traço que se encurta e se estreita, até se transformar 
num ponto, uma partícula de luz que se extingue, transcrita 
num pedaço de outro tempo. Adquire, assim, uma miscelânea 
de aparências e estados que se entranham em nós, fazendo-nos 
tempo do próprio tempo e uma parte integrante do seu ciclo. 
Que vida é esta, onde, entre palavras e sentimentos, habita 
uma incompensável distância e um inadiável silêncio, a tempo? 


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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O tempo que passa


Sob a superficial aparência de recordação e de vontade súbita,  
espreito a parte detrás do vidro onde sempre pareço estar, 
como um reflexo de mim, por mais que me mova, por mais 
que o contorne; onde, por vezes, me vejo chegar, depois 
do poema, como que uma espécie de poeta a chegar às salinas 
e no seu espelho de água, sob a luz pertinaz do dia, como se 
caminhasse para o infinito inevitável, por detrás do vidro. 
Então, deixo passar as horas. As horas inundam-me na fronteira 
das lembranças, no mar de névoa que passa e me distrai. 
Passa o sol. Deixo-o passar, com os seus raios de palavras. 
Mas a tarde está parada quando passa o rosto do teu nome 
e o céu repete-se, como as coisas inacabadas ou as memórias. 


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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

À volta

Deixemos, agora, ou por agora, as traseiras do poema: a sua forma 
de solidão. Também por ali abunda a relatividade, a subjectividade 
e, a seu modo, a decisão e a indecisão do amor e da própria vida. 
Que venham apontar-nos a esterilidade da deambulação, ignorando 
a nossa possibilidade ou qualquer outra que nos permita seguir 
como hipótese ou de ficar à volta dos mecanismos de identificação. 
Poderemos abraçar tudo aquilo que dura um suspiro, como algumas 
pessoas, algumas coisas e, até, alguns afectos, algumas sensações, 
ou o próprio poema; admirar o mar em circulação, enquanto dilui 
as diferenças de cor e o marasmo, num aparente desinteresse 
pela nossa atenção; criar, para além das palavras e dos seus sons 
e imagens ou da sua consolação, formas estáveis e, ainda assim 
questionáveis, de existência. Depois, adormecidas as palavras 
e as suas próprias contingências, poderemos espreitar, por fim, 
o nosso íntimo: a nossa retaguarda. 


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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Da parte posterior: ensaio


Espreitemos a parte de trás de um poema. 
Há um princípio de infinito: de horizonte, num céu nocturno 
com névoa e com alguns pontos difusos de luz; de raízes expostas 
com pequenos espelhos suspensos, onde cada um se pode ver 
de um certo ângulo e encontrar o seu ângulo morto; de várias formas 
de solidão e de vida e os seus opostos, de braços despertos e abertos; 
de uma base de sentidos e sentimentos, que podem não ser tão aparentes. 
Ou podemos encontrar um vidro transparente, onde, por mais que rodemos, 
não se lhe encontre a parte de trás. 


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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Nos desertos do inverno


Faltam quatro dias para o Natal e amam-se, simplesmente, 
no azul do céu, sobre continentes e oceanos. Vivem num 
pôr-do-sol onde resistem, ou adquiriram a ilusão de resistir, 
a custo, à alegria das recordações. E sabem que o inverno 
possui desertos difíceis de transitar e que as suas distâncias 
aumentam e diminuem nesses desertos. Alcançam-se repetida 
e intimamente e compreendem tudo quando se entreolham 
nos olhos, quando sentem na carne os sonhos onde na realidade 
existem e quando os medos das palavras se recreiam na preia-mar. 
Amam-se mais do que tudo e permitem-nos observar esse amor, 
o que poderemos fazer de longe, se soubermos interpretar 
os seus corpos estelares e as sua formas prolixas de florir. 


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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Contexto de inverno


O ulmeiro adormeceu, a ria parece ter subido ao céu 
e as palavras permanecem imóveis, a invejar as estrelas. 
Poderás pensar que me escondo no poema, porque se perdeu 
um fim de tarde no caudal de frio e noite; porque me falta 
o ulmeiro, a ria e a circulação das palavras. Mas, não. 
É o poema que se esconde em mim, numa espécie 
de melancolia bucólica, que não é triste ou de tristeza. 
Eu estou a ouvir os mochos a dizer o amor nocturno 
em casas abandonadas, algumas em ruínas, na parte 
ferida e resignada da cidade; a sentir o ar frio e salino 
a pulsar-me na face, por dentro, e a resposta do sangue, 
por fora dessa pele de memórias transcendentes. 
Respiro fundo, inspiro os retalhos de vida que se dispersam. 
Invoco o abraço mútuo do olhar, depois das palavras, 
e as sensações que não se disfarçam no rosto, meu amor. 


 [massivo]



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Estou a


ver a comoção do rosto, do olhar, onde se perde a conclusão 
da frase; ouvir os sons das palavras, já só vagas interjeições;
sentir o mesmo corpo, flutuante, numa espécie de vontade 
própria e sem outra, vontade, para além daquela que ócio 
produz para sua satisfação e deleite; no movimento que 
se repete para além do acto, já liberto da definição, da acção, 
das convenções, do corpo, como uma memória, um ideal 
de energia, aparentemente infinita, onde a finitude, 
ou o seu inverso, deixaram de importar: a própria paz: 
se me quiseres sentir, percorre o silêncio que nos 
medeia. Um longo, imprevisível e caprichoso oceano 
que se agiganta à medida dos medos de quem o cruza. 


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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Limiar de analogia


O mar, que recebe a ria, que recebe o rio, 
que recebe os ribeiros, que recebem as fontes 
ou as fontes, que correm para os ribeiros, 
que correm para o rio, que corre para a ria, 
que corre parra o mar. 
E eu, que não recebo nada e que corro 
para todo o lado, sem saber para onde, 
já não sei bem como. 


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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

"X"


Da mesma forma que nem todos os que escrevem são escritores, 
nem todos os que empilham segmentos de frase, ou frases, são poetas. 
Posso, portanto, e porque quero, questionar se serei poeta. 

Os meus títulos são caricatos, risíveis e os meus versos não se escutam, 
nem na insinuação do frio, que procede não se sabe de onde. 

As palavras podem ser lugares amontoados 
que cabem num bolso da página da ria 
que é, também, cidade. 

Esquece as palavras; esquece a página, o bolso. 
Vê, dentro de ti, as coisas, as cidades, as pessoas 
distantes. Ainda vivo na tua memória? 


 [massivo]



Ontem, guardei palavras num bolso


Lembras-te? Ainda te lembras de mim? Não digas nada. 
Se te quiseres recordar, toca com os teus olhos nos versos, 
naquilo que sou e não sou das palavras que dizem e não dizem 
de mim. Se calhar, dizem e sabem o suficiente para chegares 
a mim. Mas, as palavras não dizem tudo; nem sabem tudo. 
E eu, também não sei tudo. Nem tenho todas as respostas, 
nem todas as perguntas; nem teria lugar ou desejo para todas. 

E se eu não souber quem tu és? Caberemos um no outro, 
ainda assim, num qualquer canto incerto da página? 
Talvez o bolso que nos guarda não nos perca, ou perca 
devagar. Devagar o suficiente para nos encontrarmos 
com tempo para dizer as palavras que não levam tudo, 
que não deixam tudo; que não dizem tudo o que temos 
para dizer, quando se encontram dois corpos que se amam. 

Ontem, guardei palavras num bolso. Palavras que, palavra, 
não mais encontrei. Eu perco coisas e pessoas que guardo. 
Mesmo quando as guardo dentro de mim, com mil cuidados. 


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sábado, 10 de dezembro de 2016

Aguarela com melancolia


Por vezes, sinto a tristeza como sinto o sol: a arder-me, 
na pele. Não por dentro, não irremediavelmente dentro, 
mas à superfície, à flor das terminações nervosas. 
É quando mais me dói que me peçam coroas de alegria. 

Por vezes, sinto-a, à tristeza, como uma premonição difusa, 
uma porção não concreta de conhecimento inseparável, 
inútil. Contudo, uma parte de mim, que se dilui no abraço 
de um olhar, talvez, formado na memória ou na vontade. 

Mas, não é tristeza a despedida que se guarda como 
um intervalo, ou um apontamento, embora existam 
tristezas assim, que guardamos para mais tarde remediar. 

São as palavras que te dizem: até já! Ou mesmo: até!... 
Eu não digo nada. Como poderia despedir-me de tudo 
aquilo, ou de qualquer coisa, que fica em mim? 


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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O aparte da chegada da manhã


Mesmo a maior das noites, a mais fria, a mais insone, 
a mais silenciosa, a mais escura, a mais assustadora… 
será, apenas, mais uma noite, enquanto chegar a manhã, 
como uma verdade óbvia. E, como verdade óbvia, 
talvez não passe de uma esquiva estupidez 
escrevê-lo, dizê-lo, pensá-lo. Mas faz-me sentir bem 
sabê-lo e, talvez, expressá-lo, ou imaginá-lo, o torne real. 


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Fracção


A noite de todos os pontos cardeais entra, silenciosa, pela janela da página. 
Traz a memória do teu olhar, que procura o meu, com o brilho e a ânsia 
do mar; com a súplica e a precipitação dos afectos secretos e dos lábios; 
como o fogo e o apetite térreo e solar de uma semente há muito esquecida. 
Chega pelo su-sudoeste das palavras uma agradável sensação de conforto 
e a terna recordação da chuva de folhas secas. Redesenha-se a perspectiva 
das árvores dormentes que ladeiam as ruas ou das que formam os parques, 
num outono que amadurece e que pinta sonhos de azul, dourado e névoa, 
que segue as letras de um ponto abstracto como o horizonte. 
Deixemos a cidade a brincar com as folhas, a ria agarrada ao leito e o poeta 
à luz do seu interior, a brincar com a cidade, as folhas, a ria e com ele próprio. 



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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Análise superficial


A ria mergulhou num sono profundo e as palavras não nadam sozinhas. 
O poeta não transfigura. Há horas que permanece imóvel, silencioso, 
como se estivesse acanhado, a tentar adivinhar as estrelas que estarão 
do outro lado das nuvens. E sorri, por vezes, ali, sozinho e numa expressão 
que, na realidade, não consigo descrever. Talvez esteja indiferente, 
com o alheamento necessário para suportar o peso da mobilidade 
do universo e dos pequenos retalhos da sua vida singular e latente. 
Ou talvez seja essa a sua fundamental forma de comunicar, a sua língua, 
e procura o poema que terá subido ao céu, onde as palavras aparentam 
ser mais fortes do que o cansaço e fluem com o seu mesmo interesse. 
Mas, que sei eu sobre o poeta, sobre o seu centro ou sobre a sua superfície? 
Olho para ele como se me juntasse às memórias de uma dor antiga, 
labiríntica. Contudo, leve, repleta de saídas e muito mais do que palavras. 


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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Grande plano


Parecem-me sonhos, os sonhos que aparecem. 
A ria conhece bem a minha proximidade, a minha sombra, 
a minha parte mais solitária, o meu ponto de partida. 
Procura-me um trilho no rosto, na indecisão da noite; 
uma entrada para o poema, num, ainda que breve, brilho 
de luz, que indique uma passagem, que pode ser uma saída. 

As imagens e as palavras estão cansadas, assim como eu, 
também. Tudo conflui para um silêncio condescendente. 
Talvez seja sol de outono em excesso; talvez possa fazer 
da pele as minhas palavras e imagens descansadas, ao toque 
calmo das mãos do vento, que invoca sensações distintas. 
Os sonhos procuram que os veja para prosseguirem em paz. 
A lua detém-se. Há estrelas reflectidas nos meus olhos. 


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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Onde és corpo


Há quem nos ensine a temer a morte, 
com vocábulos de um pudor que dá 
para noite, sob as asas de anjos ocultos 
que afastam barreiras deixando espaços 
para, apenas, a imaginação tentar preencher 
mais tarde. A vida, assim, adquire um estado 
encantatório, uma textura astral, um certo 
enlevo aéreo, que só uma qualquer fé 
consegue explicar e justificar. Mas a vida 
salta-nos de capítulo em capítulo e, no fio 
da trama, somos nos mesmos, ao virar da curva, 
a tomar caminhos confusos e a decidir, talvez 
inconscientemente, os mistérios onde vamos 
encalhar o corpo, toda a história e as aventuras. 
Um rumo, por vezes impreciso, que nos afasta 
da magia inicial, mas onde pudemos relativizar 
a inevitabilidade num ponto indefinido que salta 
a página para aprender a domar sentidos, 
sentimentos e a fatalidade da existência. 
Possivelmente, no momento em que nos permitimos 
errar, que é como quem diz inesperadamente: o amor. 



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domingo, 4 de dezembro de 2016

Questões sobre um poema


Como poderia salvar o poema, quando nos versos se ouvem vozes 
que nos dizem que o teu corpo não tem arestas e que o meu tem 
abismos de luz, rios de risos, manhãs de afectos que abraçam 
as prováveis noites mais frias? Quando eu mesmo me encontro 
a falar com a ria, com a cidade, com os pássaros, abraçado à maré? 
Ou quando me abandono a confortar o velho e sábio ulmeiro, 
ou a ouvir os seus sensatos conselhos, sem, claramente, saber nadar? 
Como poderia salvar o poema, quando ele mesmo nega a salvação 
e diz ter encontrado, sem compaixão e amargo, um deus à esquina? 
Quando, na sua língua, ninguém encontra um resto visível de corpo 
para entregar a um pouco de alma que tanto se pretende encontrar 
na solidão, nos silêncios, numa aturada análise à sua geometria? 
O que se pode fazer por um poema que chega à derradeira condição, 
o estado da desnecessária explicação e da dispensável resplandecência? 
Em certos momentos, tudo se funde no poeta, que é um ser humano, 
e não garante a sua própria salvação ou, sequer, a sua própria existência. 



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sábado, 3 de dezembro de 2016

Atmosférico


Quando se sente, inevitável, o temperamento das leis 
e dos fenómenos atmosféricos no corpo, onde se funde 
o lençol do gesto vago do finito, as recordações são consolações 
viáveis, como um afago ou um abraço. Podem chegar pelo fundo, 
fundo, de uma palavra, dos olhos, ou da pele. Nascem na mente, 
mas deslocam-se pela circulação sanguínea para alimentar o corpo. 
Alimentam-se, então, mutuamente e numa espécie de simbiose   
que cruza a razão, os sentidos, os sentimentos, de dentro para fora 
e de fora para dentro, em múltiplas circulações, finalmente, livres. 
Não se contam, então, as palavras, nem conta, nem se conta, o tempo.  



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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Realização repetível


Brevemente, poderei ser eu o velho que ignora a proibição 
de alimentar os pombos, como quem se alimenta de companhia, 
se ainda existirem pombos na cidade; se ainda existir um lugar 
habitável para velhos que tropeçam na solidão silenciosa; 
se o meu corpo não seguir o sentido da brevidade do sono; 
se não me afogar de vida ou de gestos imaginários. 
Ou poderei ser uma espécie de pombo sem preconceito, 
a criar esperanças; sem poder fugir da cidade, à espera de um velho. 
O amor é sempre uma solução viável, uma alternativa possível. 


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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O céu pode esperar


Deixo-me enganar pela avidez dos meus olhos, 
por eles vagueia uma multidão nocturna e ansiosa. 
Procura, a multidão, ser vista, sem devolver o olhar, 
para continuar a sonhar, num fractal de movimento. 

Olho, agora, para a palidez lunar da ria. Reflecte a fundamental 
imagem da cidade. A cidade definitiva, onde tropeço, e fecho os olhos. 
Assim, vejo o brilho dos teus [olhos] que me querem puxar para dentro de ti, 
para aí me deixarem, no lugar onde são desnecessárias todas as palavras; 
o lugar onde se esquecem todas as coisas, como as perguntas e as respostas, 
e se fica entregue a todos os sentidos físicos, metafísicos, cerebrais… 
O céu pode esperar, mas é para aí que eu vou tomar o teu corpo. 


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