domingo, 29 de junho de 2014

urbe L




os dias não são todos iguais olho para trás 
de onde ainda não há pirâmides de sal 
a cidade é mutável como o mundo e as relações 
querendo-a ou não a ria sempre esteve aqui 
mesmo nos momentos em que eu me abandonei 
partilhamos as nossas cicatrizes e pequenos triunfos 
nenhum personagem é inteiramente feliz 
talvez se tenham esquecido da esfera magnética 
e eu fui diluindo a cidade nas palavras e afectos 
amalgamando as cidades da minha vida 
por cada novo capítulo e verso após verso 
eu que já fui um forasteiro revestido de campo 
por vezes procuramos a cidade na cidade errada 
não existem partes erradas na cidade dentro de mim 
não a salvo nem ela me pode salvar no espaço 
onde a rua se interrompe em mais um equívoco 
mas nada é tão simples nem tão complicado 
e pela frente ainda existem todos os caminhos 
que faltam e que de qualquer forma nos levam 
ao fim circunstancial num tempo indeterminado 
é aqui que o céu é cruzado por um bando de metáforas 
as ruas ficam apinhadas de novas e velhas alegorias 
e o tempo e o espaço fundem-se no magnetismo 
sem novas oportunidades para a descrença 
de onde a partida é implícita como as vagas 
nas janelas do mar que adormeço ao domingo 
corre uma urgência em mim que eu não vejo na cidade 
as noites não são todas iguais no fim da urbe 




sexta-feira, 27 de junho de 2014

urbe XLIX




a rotação cumpria o seu papel no acto 
o dia acordou com um bramido do sol 
encontrou-me imóvel e sem sair de mim 
com receio de me perder 
perdido por não me recordar do nome 
de um rosto turvado e perplexo 
entre páginas em branco de folhas 
com linhas também em risco de acordar 
assim como os versos livres 
a cidade ainda não estava aqui 
uma-a-uma as palavras dos sonhos 
partiram para sonhar no avesso 
sob a exactidão que dói num cicio da lua 
uma-a-uma as outras palavras acordaram 
unidas aos sons de uma música que era eu 
a cidade começava em sinais intermitentes 
e arrolhada na firmeza do arrulhar dos pombos 
e da translação que nos trouxe até aqui 
digo-te agora que me espreguicei e sorri
a esperança era da piedade e eu não sabia 




quinta-feira, 26 de junho de 2014

urbe XLVIII




uma porta de impulsos eléctricos aberta 
uma ponta permanente de indução 
por vezes também creio que eu talvez 
a três poemas do fim 
a dimensão não importa 
haverá sempre um céu azul magnético 
a cidade há-de continuar 
na magia dos movimentos e fluxos
na metamorfose do som 
na amalgama do sabor 
na energia do amor 




quarta-feira, 25 de junho de 2014

urbe XLVII




havia um ruído ténue mas perceptível 
que tive dificuldade em localizar 
talvez porque ultimamente ando mais lento 
nuns laivos e apontamentos de campo 
ou por coisas que são factos que aparto 
a cidade também não aparenta ter pressa 
talvez por saber quando não há soluções fáceis 
eram poemas adiados e rascunhos guardados 
que murmuravam em caixotes gemebundos 
palavras que se acomodavam ao espaço 
já usado e acomodado ao mundo exterior 
e que davam liberdade ao espaço de gavetas 
recordo que nos faltou o espaço e o tempo 
que talvez sejam a mesma coisa simples 
anos depois das cinza dos poemas passados 
a limpo e de todos os outros indeterminados 
que a insegurança e a vontade de ferir expôs 
ao fogo que assim me queimou apegos 
rastos e caminhos em vários tempos verbais 
em múltiplos sentidos e amplos sentimentos 
talvez por falta de outros espaços e necessidades 
aparenta escorrer uma melancolia espessa 
tomava o ruído ténue dos poemas e o meu 
amalgamados anos depois do meu pai 
tinha o céu nublado e o silêncio indiscriminado 
dos pássaros e da correnteza da rua e da ria 
reunidos na polissemia e na ausência de pontuação 
mas é assim que também nascem os sorrisos 
e as cores e os gostos e os odores e o próprio som 
declaradamente sem pontos ou casas decimais 
onde tudo fica diferido no tacto inteligível 
já não há um ruído aproximadamente ténue 
há uma melodia compreensível e esclarecida 
talvez dimensões que não tenhamos procurado 




urbe XLVI




é difícil despir a própria pele 
a cidade na franqueza dos sentidos 
a individualidade da imagem nua 
caídos na realidade do tempo 
deitado no espelho trémulo da ria 
à mesma hora do ocaso iminente 
próximo da hora de ponta das gaivotas 
que voam rente aos sinais de chuva 
no dia que vale pelos ovos moles 
que há-de ganhar a noite à noite 
enquanto as sombras se adivinham 
na infra-estrutura de uma velha história 
onde os sorrisos nascem devagar 
mas onde perduram mais tempo 
alimentados pela música da memória 
após memória num processo casual 




nota: ovos moles, é um doce conventual aveirense

sexta-feira, 20 de junho de 2014

urbe XLV




mesmo que as palavras perpassem silêncio 
existe um intervalo no meu espaço 
emoldurado pelo sorriso sempre iminente 
e insistente como se esperasse o exame 
dos pigmentos que tingem os enigmas 
e a cidade tantas vezes impulsiva e absoluta 
existe um espaço no intervalo do meu espaço 
que reúne e une todos os meus espaços 
mas não por solidão apenas por liberdade 
e percorre os cantos e recantos da cidade 
como uma carícia minuciosa e ténue 
mas presente unicamente feliz e sem nome 
onde brinco com todas as minhas tristezas 
com todos os meus temores e angústias 
até ao cansaço por alegria 



quinta-feira, 19 de junho de 2014

urbe XLIV




deixo o quarto minguante no céu 
e quase todas as traças na rua 
que dançam sobre as palavras mais pesadas 
no meu rosto a história do dia continua 
a cidade fica na música do sorriso dos olhos 
esta é a noite cerrada que liberto 
quando todas as sombras forem uma só 
como uma estrada direita e densa 
deixo os fantasmas soltos com as nuvens 
e abrigo as estrelas que me acompanhem 




quarta-feira, 18 de junho de 2014

urbe XLIII




fim por fim o fim-de-tarde renasce na porta 
de entrada e com ele chegam os pirilampos 
como memórias alegres que se prolongam 
pela rua como quem oferece sorrisos ainda 
frescos e impregnados de primaveras vivas 
enquanto me dispo da cidade e reconheço 
a vida que corre pelos canais e nas calçadas 
fecho os olhos e ainda consigo ver o céu azul 
o mar sem ondas em duas linhas tranquilas 
a do horizonte possível e a da costa acessível 




terça-feira, 17 de junho de 2014

urbe XLII




fechei o tempo na palma da mão enquanto 
esperava pelo verde do semáforo do outro 
lado da rua e mantive-o ali para o proteger 
do ruído e do vento que vinha livre pela via 
que não voltaria a percorrer no murmúrio 
túmido e húmido do fim da tarde quebrada 
na ficção de um sentimento de protecção 
ainda vinhas junto a mim sorridente nessa 
presença habitual e firme de abraço perdido 
apenas a ocasião estava no gesto mais terno 
dos meus dedos no completo vazio que tudo 
ocupa e a confeitaria fechada e em renovação 



segunda-feira, 16 de junho de 2014

urbe XLI




na construção colossal do quotidiano 
a razão à distância de uma margem 
a acção desenvolvida ou restringida 
os afectos que tonificam e nutrem a energia 
as mãos que colhem e moldam a névoa 
o espaço que pressiona e enruga o caminho 
o formigueiro de audácia oculta da multidão 
a cidade que se ergue cansada nas pontes 
o sujeito elíptico da oração linguística 
o verbo que faz promessas exequíveis 
os predicados à-vontade e patentes no espaço 
os opostos e o reciprocamente que se cultiva 
entre tantas circunstâncias e doutrinas 
aguardam resignadamente o fim do poema 
como quem aguarda o termo da desilusão 




domingo, 15 de junho de 2014

urbe XL




aveiro e a ria de olhos nos olhos num abraço 
há domingos em que a cidade pode ocupar 
outras cidades e foge das palavras com cio 
embebida em vida que jorra na magia da rua 
há domingos que se preenchem com a cidade 
numa profusão polissémica de odores e sons 
de imagens e sentidos num ócio que acaricia 
há domingos em que a cidade fica repleta 
de outras cidades e de idiomas e de alegria 
onde nem todos os calendários marcam 
o mesmo dia e os relógios se esquecem 
no silêncio das obras e um resto de lençol 
despreocupado com a correcta forma de estar 



sábado, 14 de junho de 2014

urbe XXXIX




ainda há tempo para um sorriso quente 
antes que caia a linha flexível do horizonte 
não quero pontuar é certo o ponto final 
e podemos pressentir a sua chegada 
nas molduras vazias que se passeiam 
e nos intervalos da respiração tensa 
dos espelhos sem os reflexos da tarde 
no mundo côncavo que habita o peito 
com a hesitação da cidade que adormece 
com o pulsar de um coração despido 
ainda há tempo para o aceno do adeus 
antes da chegada das sombras da noite 
que se aproximam lentamente das janelas 
depois não sei talvez a brisa leve as cinzas 
que nem os ventos conseguiram levantar 




sexta-feira, 13 de junho de 2014

urbe XXXVIII




sinto falta do mar e do abraço do seu relento 
e o mar aqui tão próximo e tão genuíno 
com ventos e rebentação na praia e molhes 
quero o vento no rosto e tenho praças vagas 
onde descansam os olhos à saída da luz 
e um tumulto de paz que se manifesta só 
e obriga a esquecer os muros na hora de ponta 
percorrem-me as ruas atravessa-me a cidade 
que me pintou passadeiras e plantou sinais 
que informam vagamente e não sabem florir



quinta-feira, 12 de junho de 2014

urbe XXXVII




enquanto fico a falar sozinho à janela 
sem eternidade descobre-me a cidade 
agito e estendo a poesia molhada de onde 
escorrem as mesmas palavras sem destino 
diáfanas que completam o chão das ruas 
esparsas e deixam tantos espaços vazios 
em abraços onde não há mais nada a fazer 



quarta-feira, 11 de junho de 2014

urbe XXXVI




deambulei em mim repisando caminhos 
que reconheço dos rascunhos de versos 
e de fotografias repetidas mentalmente 
há um lugar que sinto meu e onde gosto 
de ficar e deixar o tempo à sua mercê 
onde sem querer ouvir a cidade a guardo 
em mim para que o vento me deixe escrever 
perdidamente onde nada é assim tão raso 
tão líquido e tão aparente que não se logre 
não sei quando nem como deixou de haver 
luz e ganhei vizinhos para o jantar de razões 
e de sentenças prefabricadas de outro lugar 
talvez a luz como a sombra tenha espaços 
rotos onde o poeta transfigura eternamente 



terça-feira, 10 de junho de 2014

urbe XXXV




existem vários versos no escuro da memória 
onde habitam gestos e sons do vazio dos meses 
imagens com aromas que transportam o tempo 
que as pombas já conhecem de cor e sentem seus 
numa cidade que se adapta para encaixar o ocaso 
aveiro que serena nos braços da ria ao som do mar 
não há muitas janelas que te mostrem assim 
quando ainda não é tarde e tenho que partir 
ou dias que corram da estação para a avenida 
que conduz a vida sem curvas ao canal central 
deixámos de nos ver à janela em dias quebrados 
com coisas que deixaram de nos servir no corpo 
e coisas que ficaram em desuso para a cabeça 
sem nunca termos conhecido os pés da história 
vieram as certezas que despem sentimentos 
e que vestem novas causas e contextos de fé 
como brisas que afagam a assídua preocupação 
do distanciamento que ainda assim mantém 
a pele arrepiada com o perfume da resignação 
precedido pelas convicções e decisões cabais 
que parecem convergir para fora da cidade 
mas basta a circunstância de te pressentir 
para deixar de ser verdade a simples razão 
com os mesmos personagens no palco e enredo 
não sei o que possa declarar a vigília da noite 
às ruas da saudade da esperança e dos sonhos 
que se apressam a confluir para os jardins do medo 
invadidos pelas grandes questões dos pardais 
enquanto parte de mim o moliceiro que recolherá 
e transportará o moliço que há em mim e a mim
numa cidade que se molda para encaixar a aurora


segunda-feira, 9 de junho de 2014

urbe XXXIV




também existe magia na cidade 
com travessas que contornam as rimas 
ventos fortes com alegria e vagar 
e propósitos de atalho e fuga 
interrogo-me na periferia do verão 
e pergunto aos sentidos proibidos 
porque não coincidem o tempo e os olhos 
quando escrevem a poesia do dia 
e porque parecem tão doentes as certezas 
no instante em que tudo leva a prever o amor 
ou no momento que o leva a perder 



domingo, 8 de junho de 2014

urbe XXXIII




as ruas de junho unem o céu e a terra 
à espera de serem postas em prática 
dentro de mim a cidade à minha espera 
que nunca me deixa de mãos vazias 
na partilha do vento da luz da sombra 
o momento é este de fazer sentido 
que é seguir numa direcção da rua



sábado, 7 de junho de 2014

urbe XXXII




o tempo regressa com novas formas 
sobre as portas fechadas da biblioteca 
saíram da cidade todos os pombos 
a verdade decadente ficou na rua 
a criar esperanças em corpos doridos 
os únicos que ainda habitam a noite 
os sinos abandonam a torre da igreja 
as mãos adormecem cheias de saudade 
se o amor entrar em convulsão repentina 
não há viva alma que o ampare e socorra



sexta-feira, 6 de junho de 2014

urbe XXXI




pedi a todas as frases que me acompanhavam 
para me deixarem por ali esquecido de mim 
e assim fiquei exposto no cais dos mercantéis 
que se foi distanciando do mar e da cidade 
escrito por desígnios antigos e desconhecidos 
de precipitação que se senta em esquecimento 
que se exprime no destino que não se admite 
agora cheira a cidade molhada depois de tudo 
a noite adiantou-se com o pressuposto da chuva 
que se deteve na hipótese de te encontrar 
como se o tempo fosse formado por nuvens 
que se perdem de todos os indícios da alteração 



quinta-feira, 5 de junho de 2014

urbe XXX




as palavras aparentam procurar um meio de transporte 
e simultaneamente procuram um lugar para onde ir 
querem fugir dos sofismas que se encontram à espreita 
e à deriva nas esquinas da cidade que se dobra sobre si 
obstinada em frente ao computador e presa à televisão 
mas são as ruas que se confundem quando mais correm 
e param nas entrelinhas para provar morangos e cerejas 
que entram clandestinamente nos passeios absortos 
que temem perder-se sem querer enquanto esperam 
e enquanto coleccionam verbos no infinito por delicadeza 
são os veículos que na realidade se perdem da realidade 
em fórmulas inconstantes de velocidade e progressão 
e eu despeço-me dessas palavras reflexas e de adereços 
sigo em viajem com o vento na hora certa dos noticiários 



quarta-feira, 4 de junho de 2014

urbe XXIX





existem dias em que perdemos a identidade 
e somos simplesmente substantivos comuns 
unicamente pessoas e meramente árvores 
nesses dias perdemos as horas e a viabilidade 
talvez até a perspectiva e a ingenuidade 
desabam as subtilezas que espargimos na pele 
e ainda assim é possível conceber sorrisos 
e espalhá-los pela cidade em vários destinos 
em gestos que contornam os sentidos pejorativos 
disseminados pelas calçadas que são exoneradas 


terça-feira, 3 de junho de 2014

urbe XXVIII




se escutares a cidade com atenção 
vais ouvir os sorrisos que poderás ver 
se ainda com atenção vires a cidade 
e se a sentires de olhos fechados 
ou abertos como quem procura emoção 
ou em toda a palma da mão consciente 
ou na pontinha dos dedos inquiridores 
ou em toda a extensão do pescoço aceso 
pelas costas hirtas e cintura eriçada 
num estremecimento longo e quente 
que sobe pelos pés e pernas túmidas 
repletas de viagens fulgentes e urgentes 
e pelo peito e ventre fora e dentro 
que une perspectivas e paralelos 
traduzidos em sons resgatados ao prazer 
sob e sobre nuvens que também sorriem 



segunda-feira, 2 de junho de 2014

urbe XXVII




são os nomes que deslocam os espelhos 
que podem fazer sentir os afectos populares 
daqueles que atravessam continentes e mares 
no dorso das gaivotas que vem pedir conselhos 
aos santos que murmuram nos altares 
e às estátuas estropiadas de seres desamparados 
paira sobre as palmeiras uma imagem de alegria 
ouve-se a promessa de ventos enraizados 
há pelo menos uma saudade no sal da ria 
que aveiro canta sem considerar a cronologia 
obedecendo à paz dos odores encantados 
e saí dos minúsculos canais para as minúsculas ruas 
onde simplesmente repousam as luas 
que conseguem fazer desaparecer o tempo 



domingo, 1 de junho de 2014

urbe XXVI




tudo em mim se move na mais pura morosidade e alinho 
o céu cheio de cidade e premência também não promete 
respira a cidade na verve de um hiato de cintilação febril 
e eu a mil menos um porque o tempo é de apuro e retiro 
guardo-me em anotações apinhadas de cidade e eventos 
sem cronologia predefinida ou periferia displicente e oca
não importa se foi a cidade que se esqueceu de acordar 
ou se fui eu que me esqueci de dormir nessa tempestade 
esses segundos de esperança resgatada e recta são livres 
mesmo que em duas ou três linhas obsoletas de silêncio 
que poderia ler e dar entre a multidão traída e alucinada 
revestida por rectas pontuações descartáveis e repostas 
onde por todas as formas lhes desenho sorrisos práticos 
não importa se já partiste ou se somente me fui diluindo 
se me esqueci de partir ou voltei sem me esquecer de ti 
esses monumentos de vivas memórias superam a cidade 
ultrapassam as velhas combinações binárias e arbitrárias 
e afagam a insistência doce e a existência sem promessa