segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

eco


são martinho do porto | alcobaça | portugal


onde me encontro, nesta história? 
o dia a subir as cruzes, a tomar 
a noite que despimos de olhos 
fechados e a apressar as meias 
palavras de chegada e saída. 
o amor que se levanta com nada 
se parece. talvez procure uma saída, 
que talvez não encontre. mas a manhã 
perde a coesão que as metáforas 
não poderão salvar do teu desejo 
que faz eco em mim. 


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domingo, 28 de fevereiro de 2016

a tua imagem


s. martinho do porto
são martinho do porto | alcobaça | portugal


quando a tua imagem atravessa 
o céu, o mar, os ventos, as letras, 
as pedras, as cores, os cheiros, 
a temperatura, os sons, a luz, 
as dimensões, o tempo, a sombra… 
e bruxuleia, em mim, na consciência 
de confusos sentimentos, anuncia-se 
a repentina fractura do meu débil 
ponto de contacto com o mundo. 
e, tão instantânea, mas prevista, 
surge ela, a sequiosa e faminta poesia. 


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sábado, 27 de fevereiro de 2016

panorama


praia da barra | ílhavo | aveiro


há uma hesitação na escolha da cor 
com que hão-de pintar o odor do fim 
da tarde, onde nasce um vento profundo. 
crescem, no céu, junto a linha do horizonte, 
umas linhas radiantes de urgência obscena, 
com termos de todas as línguas do mundo, 
como que a desenhar os ritmos do mar. 

o ímpeto do mar juntou pequenas pedras 
na praia, numa escrita universal e titubeante. 
uma escrita, que não mente, na erosão da costa. 

vê como se cruzam os sons nas letras dos sítios 
onde mais me dói o trilho das coerências inertes, 
enquanto o inverno se atrapalha na sua dimensão 
de alma que cheira a ilusão com bolas de naftalina. 

não sei quem me vai atirar a primeira pedra, 
ou quem vai chamar quem à pedra ou às pedras. 
quem vai atirar a pedra, ou as pedras, talvez 
como peças de um jogo, talvez esconda a mão. 


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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

ovo




é um ovo de poema.
dentro do ovo há palavras
e sentidos, em estado incipiente.
em cima deste ovo há uma galinha,
em sobressalto inopinado,
que guarda o silêncio e coisas
que não querem dizer nada;
que guarda o inusitado contido
e perguntas a escorregar compaixão.
há um galo sem remédio, por perto,
envolto em gestos de murmúrio
dilatado, quase uma grande razão.
mas o ovo ainda está em silêncio,
inconsciente dos limites verbais.


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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

corrupio de gente


porto
porto | portugal


dirias: «um corrupio de gente». e eu fico, 
como então, a olhar, como quem nada vê, 
para a multidão. tufos desiguais de pessoas 
indiferentes, resignadas, persistentes, ignotas, 
em fluxos de movimento errático, mas fluido. 
como que em atracção magnética, induzida 
por uma urgência invisível e universal. 
por vezes detém-se, abruptamente, 
de encontro a uma barragem invisível 
ou perante um obstáculo imprevisto 
e irredutível, num momento hesitante, 
forçado, mas obediente, para prosseguirem, 
depois, em premência, repentinamente, 
repetidamente, como se fossem repelidos 
pelos objectos ou naturezas imobilizadoras. 
e cada indivíduo desaparece, algures, 
absoluta, indiscriminada e invariavelmente. 
gosto de pensar que cogitam, para além 
da necessidade de circulação maquinal; 
que não são simples gestos de dependência; 
que são mais do que a fatalidade exterior, 
aparentemente ordeira, opaca e idêntica; 
que cada ser, cada um, é um universo 
de vários, com múltiplos universos, comuns, 
ou invulgares. sistemas, raciocínios, vidas, 
abstracções, mais ou menos complexas. 
gosto de o pensar, de pesá-lo, de circulá-lo, 
porque sou parte sedenta desse aglomerado 
sem nome, dessa massa física e imaterial 
ondulante e deambulante; parte inadiável 
desse corrupio de gente, também dentro, 
também fora, de mim.


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

de pedra




há pedras no chão. 
seja qual for a sua matéria: são pedras. 
mas não são apenas pedras, 
não são pedras sós. 
não são só pedras que pisamos, 
são pedras com as quais nos podem alvejar. 
voadoras, mas, ainda assim, pedras. 
podem, as pedras, constituir abrigos 
e ficar dissimuladas, como se o chão 
cresce-se em direcção ao céu, 
suspensas até da sua irreflexão, 
sem o entendermos, como pedras. 
se eu não escrevesse poderia ser uma pedra 
e escrevo-o por pedra ser.


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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

para trás


arronches | portugal


na definida indecisão da tua boca, 
no silencioso movimento do teus 
lábios, relembro a urgência incauta. 

duas feridas que se aproximavam. 
como a meia-noite: o fim e o início. 

mostrei-te a minha timidez e vi a tua. 
tocámos as nossas timidezes, receosamente. 
lentamente. curtamente. timidamente. 
tanto quanto a proximidade nos permitia 
e a distância nos impunha. 

pintámo-nos incompletos, por inacabados. 
nunca foi e não é tarde onde se fez tão tarde. 
hoje, o nosso rosto difere dessas pinturas, 
onde já se via o sorriso que nos apazigua. 


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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

para a ilusão da indiferença


portalegre | portugal


penso de mim para mim, sentado 
num muro de palavras. apercebo-me 
da ilusão de possuir e da existência. 

não fui eu quem inventou deus 
num copo de vinho eupático, 
na taberna da diagonal manhosa. 

trago histórias e testemunhos 
sobre a cidade que se encolhe. 
recordá-los é aumentá-la. 

foram as circunstâncias a impor 
as distâncias, mas não fatalmente 
as decisões de prolongada ausência. 

o mesmo sol está além das nuvens 
diferentes e faz as pazes com o céu. 
espero que tudo esteja bem contigo. 


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domingo, 21 de fevereiro de 2016

da janela


aveiro | portugal


tenho janelas que se abrem para dentro, 
as janelas que se abrem só por dentro, 
as mesmas janelas que dão para dentro, 
para os lugares que se abrem em mim; 
assim como janelas que dão para fora, 
janelas que se abrem para dentro, 
e que só se abrem por dentro. 

espero por ti desde o início do dia, 
para a minha melhor parte do dia, 
mas as tuas janelas não se abrem. 
creio que nos gostámos até ao fim 
e ainda há tanto para se gostar. 


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sábado, 20 de fevereiro de 2016

uma estrela muito massiva


aveiro | portugal


examinava um acelerador, um átomo introspectivo,
uma centelha celular... eu queria saber mais,
mas o fim da história é sempre mais além,
enquanto percorremos a fragilidade do momento,
instante a instante, a cada espaço, a cada hiato…
até que o mundo se transforma numa imensidão
de figuras de estilo e os ruídos laborais nos acordam
revoltos no regaço e vemos a poesia mãe a cair
num chão entregue aos passos apressados do susto.


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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

escuta




Eva não se chamava Eva.
Eva é um nome que se releva.
Eva não vendia o corpo, nem alugava.
Eva vendia ilusões nas ilusões que dava,
mesmo para ela e para a sua comida,
o sustento na desilusão de ganhar a vida.
e, em vida, Eva desejou morrer e pediu a morte,
vezes sem conta, vezes em que não foi forte,
e morreu sem contar, sem querer realmente,
porque, ainda assim, amava os filhos e era gente.
Eva nunca acreditou no destino,
nem às mãos de um tempo assassino.
e morreu Eva, mas não sem luta.
eu, a Eva, a quem chamavam: puta!


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formas fascinantes


aveiro | portugal


os olhos entram ingenuamente 
na loja implícita, com o rastilho 
das palavras coloridas que abrem 
as janelas para a ria, por entre 
as colmeias da cidade verbal. 
estás na minha imagem mental. 
sei que a vida ainda necessita 
desses personagens intrépidos 
que percorrem o tempo do papel 
na grande superfície do poema,
quando as palavras são conhecidas 
e ascendem, com a extravagância 
e a fantasia das escadas rolantes, 
ao próximo nível do futuro, onde 
desnudamos as nossas formas 
fascinantes, sem perder a identidade. 


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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Prémio Dardos




     Em finais de Dezembro do ano passado [2015], fui nomeado para o «Prémio Dardos», pela Luciene Marinho, a quem agradeço a generosa atribuição do prémio e a quem peço, também, desculpa, pela modesta e tardia manifestação de reconhecimento. A Luciene é autora do blogue «Um Palco de Teatro», que vos recomendo vivamente.


     O «Prémio Dardos» é como que um selo virtual, criado em 2008 pelo escritor Alberto Zambade, autor do blogue: «Leyendas de “El PequeñoDardo” El Sentido de las Palabras». 

     O objectivo do «Prémio Dardos» é reconhecer o persistente esforço de bloggers, na transmissão de valores ou princípios culturais, éticos, literários, pessoais, etc., e que, em suma, manifestam a sua criatividade através dos pensamentos expressos nos seus textos (ou mais ou menos isto!).

     Ele (Alberto Zambade) começou por atribuir o selo a quinze blogues que considerou merecedores do prémio, os quais também indicaram outros quinze e assim sucessivamente, o que deu origem a uma imensa corrente na Internet.


     Eu, normalmente, agradeço, sempre e com toda a sinceridade, todos os prémios, ou destaques, ou jogos, para os quais sou nomeado/indicado. Por vezes, participo em alguns desafios e, muito pontualmente, dou continuidade à corrente, prémio ou brincadeira. Neste caso, e porque entendo não estar a ser demasiadamente intrusivo, pretendo destacar alguns blogues, que acompanho, e os seus autores.

     Assim (ao som de um rufo - toque de tambor), os nomeados são (e vão dezasseis!):


     (E vão dezasseis, que poderiam ser mais!)



     Alguém terá estabelecido as seguintes regras:

  • Indicar os blogues que preencham os requisitos citados para receber o prémio.
  • Exibir a imagem do selo.
  • Mencionar e partilhar o caminho/link do blogue do qual recebeu a atribuição.
  • Avisar os bloggers escolhidos.

     Eu espero, apenas, que desfrutem do prémio e, se o entenderem, efectuem as vossas nomeações!



     Obrigado,  Luciene Marinho!



imaginação




os fantasmas que me acompanham 
falam-me, com a sua própria música, 
de amigos mortais, de desfechos 
imprevisíveis e de primeiras desilusões, 
que nunca nos preparam para segundas; 
das fachadas dos mundos dos outros, 
de estados de graça que ganham balanço 
rumo ao abismo de sentenças alheias 
e de enganos que nos emergem da dor 
de onde pensávamos imergir fatalmente. 
por vezes perguntam-me quem eu sou, 
de quem eu gosto, ou se deixo de gostar. 
pressinto-lhes o risinho aberto e hipócrita, 
mas eu sei que não o fazem por mal. 
mesmo quando me entram furtivamente 
pela memória para entrarem secretamente 
no poema que tu escreves melhor do que eu. 


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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

abraço imprevisto





o abraço imprevisto mostra-nos 
que podemos não caber nas palavras 
e que é plausível habitar em silêncio, 
na satisfação próxima do eternamente. 
talvez se conheçam as suas razões. 
já não se via o princípio ou o fim do dia 
no espanta-espíritos com quartos 
de lua, estrelas e corcéis de cerâmica, 
no alpendre tomado de assalto pelo vento.  


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

natural


portalegre | portugal


agora és um natural sentado 
ao sol.  procuras os fundamentos 
da razão de um portugal mais 
profundo, ou o fundo formal 
do superficial, e cais num enredo 
político de percursos nebulosos. 
rodas o pesar, como quem procura 
a sorte, sobre o tampo da mesa. 
atravessas as teias do passado 
e regressas: o tempo baralhou 
as pistas. questionas-te sobre 
o que será a, se ainda há, justiça. 
já não esperas pelo monarca 
num nevoeiro matinal de pó. 
imaginas as horas a adolescer, 
todas as fractais das saídas 
e foges aos engenhos de odiar 
o homem. tu já amaste alguém. 


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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

único




estender a mão e agarrar o tempo,
enquanto se inala demoradamente,
na epifania de um suspiro profundo:
a inocência de habitar o abraço
de braços que temos por prodigiosos.

poderia fundir-nos um único abraço
e levar-nos para bem longe
do derrocar das ondas acasteladas
e da aragem que mordisca o rosto,
em vez de ficarmos, como castelos
de areia, na praia onde se faz tarde.

na linguagem de um único abraço
único, cresce-se por dentro, num
outro sentido. há uma compressão
agradável, convergente, que ocupa
o espaço onde a solidão se intromete.


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domingo, 14 de fevereiro de 2016

procissão


campo maior | portugal


recordo-me do dia em que pintei 
a noite de verde e nela as duas 
luas do teu peito; a precisa linha 
do nosso horizonte ignescente 
e em advertência comburente; 
a pura confiança dos vegetais 
e árvores carregadas de frutos; 
os nossos sentidos em meteoros 
a percorrer o céu como flechas. 
eu estava de asas derrubadas, 
ansioso pelo fim da procissão. 


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sábado, 13 de fevereiro de 2016

por aqui


aveiro | portugal


germino, suspenso. a ria, apesar das cores
impenetráveis e da sua espessura líquida,
aparenta não ter deixado nada por dizer.

não sei se gostaríamos de ficar por aqui,
assim como eu tanto gosto de estar,
a ouvir os burburinhos densos da água
e, nas suas breves pausas, adivinhar os sons
do rocio a despedir-se do crepúsculo.
ao fundo, um coro de suspiros e gemidos
de palavras, que continuam a reflectir,
mesmo quando as sombras conquistam
o espaço e tomam o pulso ao poema,
é quando arrefece e todos os sentidos
se continuam a despir para as evidências
que os olhos já não conseguem alcançar.
não sei se gostaríamos de ficar por aqui.


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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

ancoradouro


aveiro
aveiro | portugal


a noite, também a noite, projecta
o frémito indolente das águas.
por vezes, uma onda nua embate
no desejo concentrado do barco
sujeito à tensão da amarra adormecida.
ouve-se o canto da nudez pulsante
e o barco balança, vacila na dança,
sujeito, mas não imóvel, não imune
a oscilação que já não é de ninguém.
e despe-se da hesitação, na volúpia
etérea de um horizonte vertical,
para se deitar na espiral aromática
emocional e material das sensações. 


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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

servir de meio


aveiro
aveiro | portugal


num jorro de audácia concreta, 
germinam hieróglifos rítmicos 
e o desejo solar de ser auxiliador. 

sem a desistência da abreviatura, 
tomo alguns fantasmas da cidade 
que tinha tomado alguns dos meus. 

a própria prudência, da prévia ideia, 
é respirada pela natureza esdrúxula, 
que se distancia na exclamação. 

imagino que seja um instante frágil, 
como a inocência que antecede 
o acto de acreditar na perfeição; 

ou das longas e lânguidas certezas
do acto de amar espontaneamente. 
mas é intenso, como a decisão das raízes.  


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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

aviso


aveiro | portugal


muito alto ou muito baixo, muito ou pouco tempo? 
depende. mas, eu voo. no âmago do frio ou do calor. 
talvez, completamente e na profundidade do ar. 
contudo, preciso de um lugar sólido para repousar 
ou a ilusão de o ter na hora de partir como quem 
há-de voltar da finitude e fragilidade do céu 
suspenso nas linhas espessas da terra e do mar. 

as ilusões precisam de mim, exigem a existência 
e eu voo e vou enérgico, por vezes, tão cansado 
de voar e de ir, conhecedor da inconstância 
do vento e da abstinência do ténue horizonte. 

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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

«até amanhã, se deus quiser!»


aveiro | portugal


fotografias adiadas. pessoas apressadas. 
fevereiro a precipitar-se longamente sobre aveiro. 

o pior é o vento que nos entranha a humidade, 
mesmo nos lugares esquecidos e inacessíveis; 
que nos procura as energias e a resistência; 
que nos remete para lugares de abrigo e reflexão. 

venho procurar a solidão entre os outros, 
palavras escorregadias, nos meus olhos cansados, 
apontam para pormenores esquivos. 
a solidão assemelha-se em qualquer lugar. 


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     escrevi este poema na tarde chuvosa de sábado, 6 de fevereiro de 2016, numa pastelaria em aveiro, entre sorvos de um galão bem quente e o mordiscar de um croissant normal prensado.

     na realidade, o poema começou a desenhar-se mentalmente, na rua, entre pingos de chuva, que se intensificaram e me obrigaram a desistir de um planeado percurso fotográfico e a procurar o refúgio em entradas de prédios, beirais mais salientes, em cafés e, finalmente, numa das várias pastelarias, esta um pouco mais periférica, da zona do rossio de aveiro.

     tinha pressentido a chuva e a sua premência. havia ligeiros indícios, e uma réstia de esperança, de que poderia ter, com felicidade, algum tempo para tirar algumas fotografias com a câmara fotográfica, como fuga e redenção à obtenção esporádica, monocórdica e insatisfatória da utilização do telemóvel para esse fim, durante o corre-corre do dia-a-dia.

     à pressa, arranquei algumas folhas, quatro, de um caderno, antes de sair de casa. confesso que o gesto de arrancar folhas de um caderno me provoca algum desconforto. mas, a iminência da chuva e a inexistência de um bloco pequeno o suficiente para ser albergado num bolso do casaco, ou das calças, ou, ainda, num dos bolsos do saco da câmara fotográfica, precipitou o acto, a contragosto e, de alguma forma, forçoso. a quantidade foi extraída aleatoriamente, como se aquele fosse o volume exacto e imprescindível para satisfazer uma qualquer necessidade verborreica, que pudesse surgir num, quando muito, par de horas. nas minhas deambulações, surge, quase sempre, a necessidade de tomar algum apontamento, que pode ser um nome, uma circunstância, ou uma futilidade, coisas para as quais a memória pode não ser precisa no momento de o ser.

     foi no primeiro café que as primeiras palavras tingiram a primeira linha da primeira página da primeira dessas quatro folhas, a única folha do pequeno poema. mas ainda estava muito desperto e activo no acto de contemplação do ambiente circundante, que incluía os espaços, os seus personagens, e na degustação de um café razoavelmente bom, sem açúcar. depois, o excesso de movimento no local, e a carência de lugares sentados, compeliram-me para a evasão, num acto de benevolência e de algum apreço para com os indivíduos igualmente desafortunados. afinal, eu sabia-me capaz de encontrar um espaço onde poderia passar algum tempo de ócio, e com menos constrangimentos.


     as paragens seguintes serviram, apenas, para alimentar as minhas deambulações mentais e filosóficas, tomar algumas notas e lamentar a imprudência de ter deixado o guarda-chuva em casa, o razoável estorvo que se teria transformado num imenso conforto. chegava, assim, entretanto, à pastelaria onde escrevi o poema. era francamente menos povoada. as ruas pedonais que lhe dão acesso e a constância e circunstância da chuva, que caia com afinco, afastavam-na dos grupos de turistas. naturalmente, ainda observei o ambiente: o espaço e as pessoas. pouco depois, estavam ocupadas, apenas, duas mesas. a mesa onde me encontrava e a mesa de um grupo de senhoras, três, alguns largos anos mais à frente, creio que não tanto por terem chegado primeiro ao local. apressei-me a depositar palavras na folha para não invadir o grupo, para não escutar desproporcionalmente as conversas. por essa altura terei intensificado ainda mais a curiosidade que tinha despertado à chegada. não consigo precisar o tempo que por ali estive e com que outros gestos, durante a escrita e o lanche, mas, próximo do último trago, da última dentada e das últimas palavras, fui servido das palavras que apropriei ao título: «até amanhã, se deus quiser!» aí, sim, começou o dia. e não, eu não sei porque mistérios, mas já possuía essa certeza de antemão, não quis deus que nos tivéssemos encontrado no dia seguinte. 




segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

silêncios benignos




são os silêncios que nos procuram o abraço 
e se assustam ao mais pequeno suspiro, 
ou ao ouvirem os pingos que se adivinham, 
e fogem ao mais ligeiro crepitar da lareira, 
encaram-nos com um rosto sem olhos. 
crescem como uma névoa, ténue, quase 
sempre gentil, enquanto nos revolvem 
os sentimentos e as memórias, como se 
nos procurassem, ou produzissem, um 
sentido para a vida, nas entrelinhas 
de um acordo tácito com a solidão. 


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domingo, 7 de fevereiro de 2016

instante


aveiro | portugal


ainda que não nos esqueça, e lembro, aprendo a dizer adeus. 
adeus incríveis e eternas coisas extraordinárias que reinvento; 
adeus credos omnipresentes de astral aurífico e argentário; 
adeus ao adeus invisível e ubíquo da inclinação dos deuses. 
depois do adeus: germino, no murmúrio de um pássaro subtil. 

os meus sonhos, como eu, mesmo os mais irreverentes, 
não guardam ressentimentos de palavras ou promessas. 
eu venho do infinito. eu vou no vento e, depois, na luz. 
por umas horas, que sejam, eu vou mais alto e mais além 
que as advertências. e na descida, colho a magia da melodia. 



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sábado, 6 de fevereiro de 2016

insuficiência


aveiro | portugal


nas perspectivas ténues da conjuntura, sem medir 
o nosso tamanho, poderemos ir além dos cabeçalhos. 
alegro-me com a inacessibilidade evidente do futuro. 
não sei se te poderia habitar silenciosamente. 

gradualmente, apagas-me os traços da solidão, quando 
te abro na imaginação que se alimenta do instinto. 
prefiro povoar-me de ternura e reiniciar-nos todos os dias, 
entre gemidos inclinados, na sucessão das luas e do chão. 

esta minha aspiração egoísta de te ter ao meu lado, 
é o desejo piedoso que sinto mais por mim do que por ti 
e, simultaneamente, o querer-te mais do que a mim. 

incrível e essencialmente seguros, mais rápidos do que a luz, 
são os sonhos que conduzem a cama por entre os espectros 
nas noites frias de fevereiro, onde não volto a cada pergunta. 



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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

da entrega


aveiro | portugal


há um beijo colado aos lábios, 
impaciente, na eminência de 
abandoná-los por pequenas razões. 

há um abraço pronto, sem estratégia, 
mas ansioso no preceito de envolver. 

este meu suspiro de rendição 
é para me entregar a ti. 
renascerei à frente, acessível, 
livre, ao teu lado: um igual. 


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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

de sonho em sonho





o tempo sonhou-me em flashback, 
sem tempo para lamentos. 

confesso: não faço qualquer sentido. 

não é agradável ver crescer a revolta 
nos muros, na penumbra onde, 
na amnésia dos metros de parede, 
um cortejo de aflitos, igualmente, regam 
os bolores e desgrenham as feras etílicas, 
enfeitiçadas pela premência do caos 
imposto e alimentado pelas feras políticas. 

as feras políticas nunca são gentis. 
constroem muros para nos cercear 
com a ilusão óptica dos sofismas reunidos. 

mas, venho, eu, cegar-te com o meu amor, 
indulgente. e como humidade, para nos regar 
os musgos de felicidade e saciar a escassez. 

se, porventura, de pele colada e de lábios secos, 
encontrarmos o sol, depois de atravessarmos 
a tenebrosa ondulação das sombras da noite, 
será um sonho perfeito na semente da memória. 


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

modo


aveiro | portugal



o homem em mim não tem medo: 
compreende a sensação de não 
nos despedirmos o suficiente, 
na anestesia da partida abrupta. 
não é como a intuição de um abraço 
insatisfatório, é o travo do tempo 
exíguo no refúgio da saudade 
antecipada. retalho da história 
entre janelas sem espaço, onde 
o nunca nosso cheiro se funde 
aos silêncios de uma partida. 


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

fraga




o texto não justifica tudo, muito menos 
a dor de não te ver quando falamos. 

vive um poeta num tornado, 
com versos no palato. 
vem desvendar a alma 
de um poema terminado. 
habita em nós a palavra final, 
é esta a minha convicção, 
que um metrónomo repete 
no peito, até que os olhos, 
de uma qualquer forma, 
se apaguem na distância 
ou o tempo dos sonhos cesse. 


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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

extravagância de inverno


"reminescência" - aveiro | portugal



o dia líquido resume-se à capacidade da ria. 

as feridas, mesmo quando o são sem nunca 
o ter sido, são atalhos de imaginar caminhos. 

eu, como que hiberno num poema azul, 
na folha onde tudo acontece. 
poderia hibernar no grão de um fotograma, 
por engano, no cumprimento da pena 
por amar de madrugada, no inverno. 


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