Passagem
Os melros ficaram sem um dos seus pousos,
agora que finalmente retiraram e desmancharam o espantalho, bastante
deteriorado, que ainda permanecia no campo, carregado de simbolismos triviais e
tribais, próximo de um toural de coelho-bravo. Evidencia-se o silêncio ordinário, imposto pela perda
e pelo cerimonial complacente.
Anteriormente, com saudades do noitibó que
tardará em regressar, desloquei-me com penas e sem castigos pela estrada que se
alongava na noite e pela noite, e com a qual se fundia e confundia na mesma cor
negra com que, e com quem, a chapada também já se tinha envolvido e combinado.
Destacavam-se linhas e tracejados brancos, casualmente gastos, esporadicamente
amarelos, maioritariamente desfeitos ou deformados e, nas mesmas cores, destacavam-se,
também, salpicos de luz trémula, bruxuleante, de localidades desgarradas em
paridade com a abóboda formada pelo firmamento de padrão mais regular. Simultaneamente,
os faróis da viatura exibiam o rumo, que, em cadência, surgia, era alcançado e
transposto, e criavam sombras, espectros sem escolha. Do rádio emanava um emudecimento
determinado e calculado, no cumprimento de requisitos mínimos de ruído. Urgia a
comparência de outros sons que não os das melodias e os das notícias de
políticos, das suas políticas e das consequências, efeitos e incumprimentos de
ambos.
Neste trajecto e no decurso, antes do
evento com o espantalho, de passagem por um trecho de pinhais, já tão
inusitados em todos os sentidos, um coelho-bravo, saído da escuridão da brenha,
hesitava na travessia, a sua cruzada. Os coelhos, quando decidem transpor um
caminho, por vezes, muitas vezes, comportam-se como criaturas indecisas,
vacilantes e incertas, decidindo sob pressão de urgências suicidas. Sei que as
raposas frequentam aquelas paragens e que, por si e em relação aos coelhos,
constituem uma natural proveniência de diligências, precauções e apertos. As
raposas são criaturas ágeis, astutas, decididas e normalmente cruzam sem
titubear, quando entendem que é seguro, o que nem sempre acontece.
Determinaram-se, pois, cautelas e abrandamento, para dar tempo à natureza, que intimo,
por necessidade.
Agora, um melro surge e parte de súbito, enquanto
vocaliza um alerta. Fica na retina a cor negra brilhante da plumagem e o
amarelo-alaranjado do bico, que acusa tratar-se de um macho. Do espantalho
ficou a palha, que exala o odor da urina de rato. Há quem diga que o espantalho
era incontinente.